Estava eu hoje, imerso em várias das minhas divagações e elucubrações artístico-filosóficas, que me acometem diariamente, quando comecei a sair de um universo para me adentrar em outro: o universo de J. R. R. Tolkien, uma viagem pelas alegorias e cogitações propostas pela obra O Senhor dos Anéis – lembrando que assisti aos filmes, porém não li a trilogia literária. Resolvi postá-las para não perdê-las em qualquer região inóspita do meu cérebro e, claro, para iniciar um possível e acalorado debate.

Tolkien construía a natureza humana de seus personagens de forma maniqueísta, o que é compreensível visto que ele era um católico fervoroso; muitos indivíduos, por forte influência religiosa, concebem o “Bem” e o “Mal” como essências postadas acima do homem. Isso se deve à relação das noções de bem e mal com, respectivamente, Deus e o Diabo. Essa concepção é perceptível em O Senhor dos Anéis. A guerra entre os povos civilizados da Terra-Média contra as criaturas e bárbaros asseclas de Sauron não só simbolizam uma aparente contraposição entre civilização e barbárie como também entre os tementes a Deus – povos católicos fiéis, portanto do “Bem” – e os infiéis, seguidores das “falsas” religiões e considerados cruéis e inumanos. Vai ver ele esqueceu de um termo chamado imperialismo, ou as próprias hordas de Sauron são os EUA subjugando as nações menos desenvolvidas – e tentando submeter também outras que são desenvolvidas, para afirmar seu poder bélico e econômico. Entretanto, essa é uma interpretação limitada, com cerceios. Sabe-se que Tolkien diabolizava a máquina e, portanto, a tecnologia avançada. Essa idéia dele é visível em sua obra pelo modo como ele retratava as máquinas, destruidoras graduais do meio ambiente e da civilização como a conhecemos, conduzindo-nos rumo ao caos. Obviamente, Tolkien edificou suas críticas e predições observando e julgando o mundo que se definia em sua época: com o poderio bélico de nações como EUA e URSS, dentre outras, crescendo exponencialmente devido aos avanços tecnocientíficos, poderio este exibido largamente em guerras e conflitos, exterminando pessoas muito mais numerosamente do que as lutas armadas de antigamente; através da degradação ambiental, incluindo a destruição de florestas para ampliar cidades, edificar indústrias armamentistas – mais uma vez a presença da guerra –, dentre fábricas de outros setores, ainda por cima gerando poluição atmosférica e fluvial – fumaça e dejetos químicos/orgânicos. Extremamente atual.

Isaac Asimov criticava duramente Tolkien pela visão provavelmente arcaica e maniqueísta que este tinha da ciência e da tecnologia. Asimov acreditava, mesmo não olvidando os impactos negativos da ciência moderna, que esta também traria consideráveis benefícios e avanços, como mais conhecimento, menos alienação, mais melhorias e eficiência, menos trabalhos árduos, mais justiça. Se não me engano, também foi Asimov que interpretou mordazmente os hobbits como uma representação ideal dos ingleses pacatos, habitantes estáveis e rechonchudos dos campos e lugares idílicos do Reino Unido, distantes da tecnologia em voga, porém alienados em relação à pobreza e aos conflitos violentos, desatentos do resto do mundo.

Voltando à natureza humana em O Senhor dos Anéis, é imprescindível afirmar que a falta de densidade psicológica, sem complexidade e zonas morais cinzentas, não esfacela a riqueza dos personagens. Os “mocinhos” da obra também possuem seus defeitos, angústias, medos, alguns detentores de um temperamento instável, irascíveis e/ou inseguros. Os próprios hobbits são quase anti-herois: glutões, de natureza alheia e sossegada, meio que indolentes e medrosos. Mas uma coisa é ter defeitos; outra coisa é balouçar-se entre o bem e o mal, possuir complexidade de ações e sentimentos que o tornem categoricamente humanos, acima de simplesmente heróis ou vilões, meros arquétipos. E aí entra o Um Anel, uma alegoria tanto do poder sobrenatural/demoníaco quanto do poder tecnológico. Atemo-nos à primeira interpretação, e daí surge o questionamento de cunho moral e existencial, com uma pontinha no metafísico: o Anel seduz utilizando-se das ambições e desejos recônditos das criaturas, para assim preservar sua existência. Como uma influencia diabólica, da qual o homem não é imune. Porém, alguns são, na sua essência, de mente mais fraca, débil e facilmente suscetível ao erro que outros. Estes são mais propensos à corrupção do Um. Então, isso os situaria numa zona cinzenta? Ou, levando em conta o maniqueísmo de praxe tolkieniano, estes já eram em seu âmago maus? Haveria um pendor, por parte do escritor da saga do Anel, a um desvelo mais agudo da alma humana, que infelizmente não foi aperfeiçoado?

(Este artigo é uma colaboração de Jorge Leberg)

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