Não é de hoje que ilhas fazem parte do imaginário das pessoas, justamente por se constituírem um mundo a parte, um universo particular, onde parece haver uma separação do mundo que abre espaço para os mais loucos vôos da imaginação. Não é à toa, portanto, que ela seja um elemento recorrente das mais diversas formas de expressão humana, basta dizer a palavra Lost para que essa constatação fique mais clara.

A ilha, justamente por seu isolamento e sua condição de “liberdade” do resto do mundo, foi usada por William Golding para criar uma sinistra história que o colocou entre os grandes escritores da chamada Literatura do Pós-Guerra, ou seja, da geração de escritores que dedicou seu tempo e seu talento para tratar do espinhoso tema da Segunda Guerra Mundial. Podemos apontar juntamente com Golding nesse rol os célebres George Orwell e Jerome David Salinger, para citar somente dois nomes.

A obra mais específica de Golding a que me refiro aqui é O senhor das moscas, romance de estréia do autor e publicada em 1954. O romance narra o dia-a-dia de um grupo de garotos em uma ilha deserta tentando sobreviver e criar uma espécie de sociedade que os ajudasse a cumprir os objetivos que pretendiam. Essa sinopse simplista pode parecer infantil e ingênua, pode soar até mesmo meio moralista, mas garanto-lhes que, se as primeiras páginas se apresentam um tanto enfadonhas, o prosseguir da leitura compensa todo esse marasmo primordial.

Assim como Orwell, Golding constrói alegorias para tratar das chagas do conflito e dos rumos que as ações humanas tinham tomado. Isso fica evidente na trama conforme o grupo de garotos, primeiramente imbuídos de criar uma espécie de Estado organizador das ações deles, diverge e começa a formar dissidências cujas propostas e metas são discrepantes. Essas diferenças, que encerram formas políticas em sua forma mais elementar, são agravadas até que se tornem perigosas e radicalizem-se em uma tensão que ronda cada página da história.

É difícil estabelecer as raízes factuais das alegorias, já que as interpretações podem divergir tanto quanto os infantes residentes na ilha, pode-se encontrar ecos político-sociais em cada alegoria, da mesma forma que pode-se fazer uma abordagem mais religiosa ou filosófica para as ações e diálogos dos personagens. Enfim, o apuro técnico de uma pesquisa respaldada em preceitos teóricos poderia ser mais conclusiva a esse respeito, objetivo não almejado por esse singelo artigo.

Os sinistros rumos que toma a história deixam o livro instigante e ao mesmo tempo aterrador, sentimentos reforçados pelo fato de que se trata de crianças, ou seja, seres em formação, conhecidos pela inocência da qual muitas vezes são símbolos. Acompanhar a transformação e subversão dessa inocência em detrimento da sobrevivência frente às virulentas condições da vida social ao longo da trama redimensiona nossa própria visão sobre o frágil equilíbrio da loucura e da sanidade, e como é estreita a linha que separa civilização da barbárie, assim como o próprio caráter mutante desses dois conceitos.

Assim como Orwell, o autor também reduz a “realidade ficcional” aos seus mais atômicos elementos, para conduzir a trama do simples ao complexo, explorando cada passo e cada decisão no sentido de tentar compreender onde estaria o erro ou o estopim dos conflitos, ou da radicalização da luta pela sobrevivência. Os símbolos presentes na obra, desde o óculos de Porquinho até a concha, da fogueira até a sinistra cabeça de javali, carregam uma significação profunda, pois materializam aquela tensão e terror psicológicos que se abatem constantemente sobre as mentes dos garotos.

A ilha é perfeita para que se recrie a realidade, pois ali o escritor tem uma maior liberdade criativa, proporcionado pela desvinculação (não plena) que a ilha tem com o mundo, ela é, embora não como personagem, um elemento fundamental da história.

Toda esse panorama perturbador traçado sobre os infantes abandonados a seus próprios esforços e as agruras da vida em sociedade renderam a William Golding o reconhecimento (embora não imediato) e o Prêmio Nobel de Literatura em 1983.