Imagine que você chegou em casa há poucos instantes e não se lembra o que ocorreu no dia anterior. Agora imagine que todas as pessoas, amigos, família e colegas de trabalho revelam que passou um ano e que, na verdade, sua mulher e sua filha também estão desaparecidas.

Esse seria o resumo provável da abertura do novo livro de Lourenço Mutarelli “Nada Me Faltará”, lançado em outubro pela Companhia das Letras, entretanto o mais curioso dessa obra é não ter descrições de lugares ou narrativa, tudo é baseado nos diálogos entre os personagens.

Paulo é um analista de sistemas que desapareceu junto de sua mulher e sua filha, após um ano ele retorna sem lembrar o que aconteceu nos últimos meses e muito menos sabe o paradeiro das duas. Para piorar a situação, o personagem diz ao seu psicanalista (ou psicólogo, pois cada pessoa nomeia a profissão de uma forma durante o livro) não sentir falta delas e começa a desconfiar que essa realidade familiar nunca existiu, apesar de lembrar do casamento, da filha e de tudo que ocorreu na sua vida de casado até o dia em que iria viajar de férias com as duas. E para ele nada mudou, não sente saudades de ninguém porque em sua visão não teve tempo para sentir, a única coisa que sente é um cansaço extremo.

Cansaço esse que só aumenta dado a sua convivência forçada com sua mãe, por quem nunca teve uma verdadeira afinidade ou afeição e que só tornou-se evidente após a morte do seu pai.

Intrigante é ter a visão de todos os personagens através de seus diálogos, não apenas com o protagonista, mas também com secundários. Muitos acreditam que há algo obscuro e outros, como o melhor amigo Carlos, crêem que existe muito mais do que o óbvio, afinal nunca fora encontrada nenhuma prova de morte ou assassinato. Somando a desconfiança das pessoas próximas com seu estado de paranoia chega-se ao ponto de questionar se existe traços de insanidade na sua amnésia ou se todos estão preocupados demais para perceber que para Paulo o tempo não passou. O personagem mesmo questiona como é possível todos questionarem sua aparente apatia – por não conseguir assimilar os fatos que lhe são narrados – com a realidade que lhe é apresentada, isto é, todos levaram uma vida normal depois de algum tempo o procurando, após cessarem nada mais faltava.

Nesse ponto o leitor tem como tomar partido? Em qual discurso ele deve acreditar? Afinal, somos testemunhas das sessões de terapia de Paulo e ele parece mais atordoado com todos querendo arrancar alguma confissão do que ajudar realmente ou descobrirem onde estão sua esposa e filha auxiliando-o a lembrar, ao invés de desconfiarem que algo está mal contado em sua história.

Uma história com base em diálogos carrega uma mensagem sobre a falta de comunicação – todos conversam, questionam e refletem juntos, mas nunca chegam a um ponto em comum, aqui seus pensamentos são camuflados por suas falas. Existe preocupação ou medo? Sanidade ou esquecimento? Mutarelli não deixou pistas. Você leitor deve interpretar os personagens e descobrir se algo realmente falta.