Jorio Dauster nasceu em 19 de novembro de 1937, no Rio de Janeiro. É mestre em Relações Internacionais do Instituto Rio Branco (1960). Fez estudos de economia, em nível de mestrado, na Universidade McGill (Montreal). Entrou para o Serviço Diplomático em 1961. Foi Presidente do Instituto Brasileiro do Café (IBC) de 1987 a 1990 e Negociador da Dívida Externa do Brasil de 1990 a 1991, havendo acertado com os credores o fim da moratória. Aposentando-se em 1999 como Embaixador do Brasil junto à União Européia, foi Presidente da Companhia Vale do Rio Doce de 1999 a 2001. Como consultor de empresas, participa dos Conselhos de Administração de diversas companhias no Brasil e no exterior. Entre os autores cujas obras traduziu encontram-se nomes como J.D. Salinger, Vladimir Nabokov, Philip Roth, Ian McEwan, Alberto Manguel e Thomas Pynchon.

1. Como é que vocês chegaram a decisão de usarem aquelas gírias e expressões para o Holden?

Como já contei em outras ocasiões, O apanhador no campo de centeio foi traduzido a seis mãos quando eu e dois colegas do Itamaraty identificamos nossa paixão comum pelo livro de Salinger. No entanto, não tínhamos contrato com nenhuma editora e nenhum de nós jamais traduzira coisa nenhuma, com o que o trabalho tinha um caráter totalmente lúdico e de início nem se pensava em publicação. Também não perdemos muito tempo discutindo as características da versão, embora fosse óbvia a necessidade de manter a absoluta coloquialidade de um texto que pode ser visto como uma gravação feita por Holden na clínica de repouso ou coisa que o valha (como ele mesmo diria) onde se recupera do ligeiro surto que viveu ao fugir da escola. Depois que meus dois colegas foram removidos para postos no exterior, passei alguns meses homogeneizando as três partes da tradução, quando, por exemplo, só foi mantida a conjunção adversativa “mas” pois nenhum jovem brasileiro será apanhado falando “porém”, “todavia” ou “entretanto”. Nesse estágio, embora já não me recorde dos detalhes, é que terá sido feita a escolha final das gírias e expressões, correspondendo ao linguajar carioca da faixa etária do Holden sem cair em modismos da hora. Talvez por isso a tradução tenha perdurado sem causar estranheza às gerações que se seguiram.

2. O que leva um diplomata e ex-presidente da Vale do Rio Doce a dedicar seus esforços, conhecimentos e tempo a arte da tradução?

A primeira tradução, como digo acima, começou como uma brincadeira. Todas as outras, e agora já são muitas ao longo de algumas décadas, têm para mim o mesmo sabor, representando o desafio de encontrar a melhor correspondência no vernáculo para algo de que gosto por estar bem formulado em outra língua (no meu caso o inglês). Como só lido com autores que me atraem e sem prazo para terminar o trabalho, a tradução é para mim um fabuloso passatempo, uma válvula de escape, um refúgio onde não chegam os ruídos e as atribulações do cotidiano. Um dia bem equilibrado é aquele que começa com uma sessão de tênis, inclui diversos afazeres de negócios e termina com duas horas de tradução.

3. Que tipo de preocupação procura ter ao assumir a responsabilidade de traduzir um clássico como O Apanhador no Campo de Centeio ou Lolita? Clássicos dão mais “frio na barriga” ou não?

Movido exclusivamente pelo diletantismo, não há nem poderia haver espaço para preocupação no meu fazer “tradutório”. Encaro todas as obras com igual respeito e determinação, embora não me escape a responsabilidade de ter cuidado dos escritos de Salinger, Nabokov, Philip Roth, Ian McEwan, Pynchon, Tennessee Williams e Cheever, que sem dúvida estão entre os maiores escritores de língua inglesa dos últimos tempos. Assim, me sinto mesmo é um privilegiado.

4. Ainda sobre o mesmo tema: na sua opinião, o que é um clássico?

Não tenho o saber de um crítico literário para ousar alguma definição válida. Certamente se trata de um fenômeno complexo, em que a qualidade do texto se combina de alguma forma com o impacto cultural provocado pela temática da obra no momento histórico em que ela é publicada. Traduzi dois “clássicos”, que constam sempre em todas as listas dos principais livros aparecidos na segunda metade do século XX: O apanhador no campo de centeio e Lolita.  Sem me estender muito, lembro apenas que ambos “explodiram” (respectivamente em 1951 e 1955) numa época em que a sociedade norte-americana era profundamente “careta” e, além de seus estilos inovadores, tratavam de temas então muito delicados, quais sejam a rebelião de um adolescente contra os valores hipócritas do mundo adulto e o amor pedófilo entre um europeu de meia-idade e uma garota americana. Se o clássico fosse uma função exclusiva das virtudes do texto, será que as Nove estórias de Salinger não mereceriam maior destaque? E o que dizer de Fogo pálido, de Nabokov?

5. É mais difícil traduzir uma obra da qual se goste muito ou a apreciação por um livro é irrelevante em uma tradução?

Obviamente é mais gostoso trabalhar num livro do qual a gente goste, mas na prática as coisas podem ser mais complexas. Por exemplo, a primeira leitura que fiz de Ada, de Nabokov, não me deixou muito feliz, pois o autor exagera no uso de maneirismos, trocadilhos, referências literárias opacas para meros mortais como eu e coisas do gênero. Anos depois, porém, ao enfrentar a pedreira que foi traduzi-lo, fui descobrindo ecos maravilhosos e ritmos complexos dentro da obra que me haviam escapado na primeira leitura. Isto porque a boa tradução exige que, durante meses a fio, a gente desenvolva uma certa cumplicidade com o autor, ganhando uma intimidade que nos permite descobrir como ele alcança determinados efeitos, como monta as cenas cruciais e, em última análise, com que recursos consegue mesmerizar o leitor. Não à toa, o próprio Nabokov costumava dizer que a boa leitura é a releitura, ou a re-releitura, sendo ele mesmo um grande tradutor.

6. Como vê a questão do plágio de traduções no Brasil? Por que o leitor comum deve se informar sobre isso?

Antes de tudo, tenho asco dos editores que sistematicamente se apropriam da propriedade intelectual de tradutores muitas vezes já mortos, quando então se transformam em verdadeiros ladrões de sepulturas. E tudo isso com a quase certeza da impunidade diante da falta de interesse das autoridades, e apenas para não gastar os parcos milhares de reais que lhes permitiriam contratar uma versão moderna e competente a ser feita por um de nossos tantos tradutores que encontram dificuldade para se sustentar como profissionais. Assim como o cidadão comum fica furioso se souber que lhe venderam uma mercadoria contaminada, o leitor deveria reagir com indignação ao tomar conhecimento de que comprou um alimento intelectual adulterado. Sugiro que os interessados conheçam o blog em que a colega Denise Bottmann, com meu integral apoio desde a primeira hora, continua a lutar contra esses salafrários, malgrado sofra toda a sorte de pressões.

7. O que você acha de traduções de nomes de personagens ou lugares como acontece em O senhor dos anéis e Harry Potter?

Não tendo lido esses livros, desconheço se o recurso foi positivo ou não. Em princípio, não mexo nos nomes de pessoas ou lugares, porém não acho que devam existir regras invariáveis. Cada livro exige uma resposta específica, e é possível entender que uma obra dirigida prioritariamente a jovens tenha os nomes traduzidos a fim de facilitar sua absorção.

8. É possível traduzir algo fielmente sem soar acadêmico ou perder a voz do autor?

Traduzir fielmente não é verter palavra por palavra na ordem em que elas aparecem no original, já que isso conduziria a um texto pavoroso ou até mesmo ininteligível. O importante é saber ouvir a “voz do autor” e fazê-la soar com fidelidade no idioma de chegada: se a mensagem é intencionalmente rebuscada ou acadêmica, assim deverá aparecer em português; se é coloquial ou ligeira, esse é o tom a ser empregado na versão. Cumpre respeitar também o estilo do autor e até mesmo suas idiossincrasias, por exemplo, no que se refere à extensão das frases e parágrafos.

9. Que situações engraçadas ou inusitadas te ocorreram ao longo desse ofício? Soluções repentinas, termos “intraduzíveis”, fatos curiosos…

Nada pior, para um tradutor, que enfrentar um trocadilho, embora algumas vezes a gente se sinta mais do que recompensado ao bolar um equivalente satisfatório em português. Mas há casos em que a tradução é de fato impossível, e a alternativa se resume a alguma dolorosa nota de pé de página ou o abandono da fidelidade. Confesso que pratiquei o pecadilho da infidelidade “forçada” ao traduzir Lolita. A certa altura, Humbert Humbert relembra versinhos que fazia para a menina, dando como exemplo:

The Squirl and his Squirrel, the Rabs and their Rabbits
Have certain obscure and peculiar habits.
Male hummingbirds make the most exquisite rockets.
The snake when he walks holds his hands in his pockets…

Na linha do “non sense”, o maior valor do poemeto está nas suas rimas (conquanto haja uma referência aos esquilos, que aparecem em muitas obras do autor). Convicto de que a versão literal seria ridícula e não salvaria nem mesmo as rimas, inventei uns versinhos também absurdos usando como único gancho a cobra que anda com as mãos enfiadas nos bolsos. Espero que Nabokov releve minha audácia.

Encontrei uma jiboia
Com o braço na tipoia,
Explicando que o acidente
Era culpa da serpente.
Mas a cobra, que não mente,
Conta história diferente:
“A jiboia é uma boboca,
Tropeçou numa minhoca.”

10. Schopenhauer diz que “todas as traduções são necessariamente imperfeitas”. Qual sua opinião sobre o tema?

Como não existe uma correspondência absolutamente perfeita entre todos os conceitos de uma língua nas outras, é evidente que na transposição se perdem certas inflexões sutis, certas particularidades semânticas, certas filigranas de estilo. Mas, como só se traduz porque as pessoas desejam ter acesso a material escrito em línguas que desconhecem, dou pouco valor a essas críticas de caráter genérico. A alternativa seria a prisão dentro da língua materna ou aprender todos os idiomas…

10 1/2 – Na estante de um tradutor… Estou começando a ler Freedom, o último romance de Jonathan Franzen, que vem se firmando como um dos maiores autores norte-americanos da atualidade.

(A Equipe Meia Palavra agradece a gentileza de Jorio Dauster)