A seguir, damos continuidade ao artigo de Arthur Tertuliano sobre o romance 2666 de Roberto Bolaño. Se você perdeu a primeira parte, basta clicar aqui para conferir.

A parte de Amalfitano.

Amalfitano – que aparece brevemente na primeira parte e que só não é totalmente esnobado pelos críticos de Archimboldi por já tê-lo traduzido para o espanhol – retorna nomeando uma parte inteira de 2666. Descobrimos como foi sua mudança de Barcelona para o México e como está sua vida familiar e acadêmica. E nesta parte, a mais curta do romance, duas coisas me chamaram a atenção.

Em primeiro lugar, a interessante representação da loucura. Em uma prosa poética que não chega a constituir um exemplo de realismo fantástico, vemos um professor universitário questionando-se sobre seu estado mental. Os sonhos estranhos, a paranoia relativa à segurança de sua filha, as vozes que ninguém mais ouve, o Testamento geométrico que ele usa numa experiência à Duchamp, a degradação do corpo em um ambiente estranho – a água do lugar, que provoca o amarelecimento dos dentes, lembrou-me de Areia nos dentes, de Antônio Xerxenesky, lido no mesmo período desta parte –, tudo corrobora o clima de insanidade.O ambiente mexicano modifica as vidas de outros personagens, à maneira da de Amalfitano: há os que passam a ter sonhos bizarros, os que mudam de pensamento e os que se dão conta de uma realidade totalmente diferente da que tinham presenciado. Mais uma característica que permeia toda a obra.

Finalmente, a segunda coisa à qual me referi. Lá pelo final dessa parte, Amalfitano divaga sobre a literatura, por causa de um farmacêutico que lhe confidencia seus gostos literários: Escolhia A metamorfose em vez de O processo, escolhia Bartleby em vez de Moby Dick, escolhia Um coração simples em vez de Bouvard e Pecúchet, e Um conto de Natal em vez de Um conto de duas cidades ou As aventuras do sr. Pickwick. Que triste paradoxo, pensou Amalfitano. Nem mais os farmacêuticos ilustrados se atrevem a grandes obras, imperfeitas, torrenciais, as que abrem caminhos no desconhecido. Escolhem os exercícios perfeitos dos grandes mestres. Ou o que dá na mesma: querem ver os grandes mestres em sessões de treino de esgrima, mas não querem saber dos combates de verdade, nos quais os grandes mestres lutam contra aquilo, esse aquilo que atemoriza a todos nós, esse aquilo que acovarda e põe na defensiva, e há sangue e ferimentos mortais e fetidez. (p.225)

No momento da leitura desse trecho, não conseguia parar de pensar em como estava gostando de ler um livro tão longo e bem escrito, em como tinha agido como o farmacêutico ultimamente e em como deveria dar mais chances a diversos “combates de verdade” clássicos, como Um conto de duas cidades – que comprei há anos. Enfim.

A parte de Fate.

Só depois de algum tempo n’A parte de Fate é que me dei conta que estava diante de um “Fêite” (destino, em inglês), não um “Fáte”: um jornalista cultural, cuja mãe acabou de morrer – sua reação à morte dela me lembrou d’O estrangeiro, de Camus –, enviado ao México para cobrir uma luta de boxe, pois o jornalista especializado na área estava morto. Como sempre, um resumo sem muitos detalhes.

Assim como demorei pra sacar a provável pronúncia do nome do cara, só depois de algum tempo percebi que ele era negro. Ele chega a se questionar em um momento a razão de ter dito que era “americano” a uma vendedora de cachorro quente, e não “afro-americano” – se ele não estava nos Estados Unidos, ele passava a ser outra pessoa? A parte de Fate, ao partir do ponto de vista do estadunidense – politicamente correto pro que todo mundo chama de americano – abre espaço pra uma série de questões sobre a alteridade. A relação entre negros e brancos, entre mexicanos e americanos, ou entre mexicanos de diferentes classes sociais, tudo passa em algum momento pela cabeça de Fate. E o confronto entre os boxeadores Count Pickett e Lino (“El Merolino”) Fernández é apenas uma das peças duma metáfora maior.

Outro detalhe que esperei este momento para comentar é um complemento à comparação que fiz anteriormente com Lost, Monster e A história sem fim. Quem já viu Lost, por exemplo, sabe que há diversas cenas em que vemos um personagem conversando com outro, oculto na cena e cuja voz ouvimos antes de finalmente vermos o rosto e sermos surpreendidos com uma faceta nova do caráter de alguém que achávamos que conhecíamos. Complicado demais? Concordo. Outro exemplo: duas pessoas, que só se conheceram na ilha, já tinham se esbarrado anos antes e não lembravam. Tá, o exemplo foi bobo demais.

Essas estranhas coincidências e conexões entre personagens também estão presentes em 2666 e, de vez em quando, ocorrem da mesma maneira com que descrevi Lost: às vezes uma característica mínima denuncia que estamos lendo sobre um personagem que já conhecemos: físico, pensamento, atitudes ou voz. Voz? Sim, voz. Mesmo com tantas pessoas habitando as 848 páginas, Bolaño escreveu um 2666 repleto de individualidades críveis: tem muito escritor por aí com 15 personagens que são exatamente os mesmos. Se isso já é difícil de fazer, imagina criar uma teia de conexões entre eles que não soe forçada?

N’A parte de Fate, por exemplo, Rosa Amalfitano, filha do protagonista da segunda parte, não só aparece, como se torna essencial para o avanço da trama de Fate no México. Vários outros personagens se cruzam, têm breves encontros, cada um deles imerso em si e sem ideia de seu papel no grande panorama que se forma. Igual a tudo na vida.

A parte dos crimes

Na primeira parte, a situação não passa de um ruído no televisor ligado, em que ninguém presta atenção; na segunda, é motivo de preocupação para um pai, que não consegue discernir direito se o que ocorre é um fato externo ou mais um sintoma de sua sanidade mental questionável; na terceira, isso incomoda um jornalista de tal forma que ele chega a pensar em investigar o assunto, só para descobrir que os seus editores não querem a pauta por não ser sobre negros, nem sobre americanos.

Mais de duzentas mulheres foram mortas violentamente, a maioria depois de estuprada, em Santa Tereza. Alguns suspeitos foram presos, mas os crimes continuam ocorrendo.

Esta é a parte mais esquemática e jornalística do romance. Após a descrição dos corpos encontrados, com vocabulário médico legal, pouco dá pra saber das vidas das vítimas. A maior parte trabalhava nas diversas maquiladoras, fábricas que utilizam mão-de-obra barata e que tornam a taxa de desemprego da cidade uma das menores do país. Muitas são jovens, entre 18 e 30 anos, mas crianças com pouco mais de 10 anos também entram nas estatísticas. Em geral, são encontradas com as roupas como que intocadas, como se o(s) estuprador(es) e assassino(s) calmamente as houvesse despido e vestido novamente.

Como disse Fernanda Takai, “a gente se acostuma com tudo”. Com parágrafos técnicos sobre os laudos intercalados com outros que dão continuidade à trama, acabamos em situação semelhante à de um dos policiais encarregados do caso do serial killer: (…) e então Juan de Dios Martínez deixava a xícara de café em cima da mesa, cobria a cabeça com as mãos e de seus lábios escapava um ulular tênue e preciso, como se chorasse ou lutasse para chorar, mas quando finalmente retirava as mãos apareciam, iluminada pela tela da tevê, suas fuças de sempre, sua pele infecunda e seca de sempre, sem o mais ínfimo rastro de uma lágrima. (p. 511)

Quem me conhece sabe que eu não sou nada fã de arte engajada: não funciona comigo, fico com os dois pés atrás; panfleto eu guardo no bolso até chegar próximo de uma lixeira, pra não jogar na rua. A questão é que o livro conta tão bem suas histórias que não tem como não pensar em desigualdades e no descaso dos mais ricos com a situação dos mais necessitados. A situação de Fate e o editor de sua revista é uma das menores metáforas para a situação do México na América do Norte, por exemplo. Há também posicionamentos políticos dos personagens, características muito próprias de cada um, mas nada que tenha me parecido doutrinário, o que me causou alguma admiração.

A parte de Archimboldi

Limito-me a dizer que praticamente tudo que os críticos queriam saber sobre seu escritor alemão favorito está nesta parte. De 1920 até os dias atuais, o panorama é o maior dentre as cinco partes do romance. Belíssimo, violento, poético, criador de novos sentidos e de novas lacunas e pontas soltas, o pedaço final reservado à Archimboldi potencializa o que a obra já tinha apontado.

Li em um mês e duas semanas, mas, além de ter alternado com outras leituras, admito que fiz uma pausa de cerca de duas semanas na metade d’A parte dos crimes, por causa da Bienal do Livro, principalmente. Apesar de longo, o livro tem uma linguagem gostosa de ler e merece ter um tempo reservado só pra ele. Não recomendaria que a leitura se estendesse por muito tempo: há interessantes temas que são retomados, conexões sutis que são feitas e que se notam mais facilmente quando se está devorando o livro.

Podia citar algumas dezenas de coisas que a leitura de 2666 me provocou, mas 1) só vou lembrar quando tiver postado no blog; e 2) já estou escrevendo esse post há quase 10 dias, tentando editar mentalmente o que escrever. Resumindo tudo, diria que a obra me fez quebrar uma série de preconceitos, que já vinham sendo quebrado aos poucos – só não digo como, a respeito da cultura latino-americana e a língua espanhola. Preconceitos relacionados a outros, mais brasileiros, e que durante muito tempo me impediram de ser uma pessoa melhor.

Elipse? Mais uma influência do Bolaño.