Na tradição judaica, na comemoração de um Bar Mitzvah o aniversariante senta numa cadeira na hora dos parabéns e é levantado 13 vezes (correspondente a sua idade) com desejos de boa sorte. Só que para João, um jovem goi (sem origem judia), é sabotado pelos seus convidados durante o parabéns em sua festa de aniversário – que imita um Bar Mitzvah para fazer com que o jovem possa ao menos parecer judeu por um dia -, e desce em queda livre em direção ao chão. As consequências desse ato resultam em fisioterapia para João e reflexões morais e rememorações para nosso narrador em Diário da Queda, quinto romance de Michel Laub, lançado esse mês pela Companhia das Letras.

A queda de João, o único personagem nomeado na obra, e a clamação por perdão de um dos responsáveis é que dispararão tudo que o narrador sente pelo seu avô, pai e por si mesmo. Todas as memórias entraram em colapso entre as atitudes do narrador no passado (e no passado do avô e do pai) e seu presente – aos 40 anos de idade, no terceiro casamento que está prestes a acabar como os anteriores.

É formidável como a primeira parte desse romance consegue mexer com os nervos do leitor, desde a maldade praticada no aniversário de João, as traquinagens no colégio em cima do estudante goi – que acaba por criar um ato antissemitista de descendentes de pessoas que sofreram com essas atitudes – e sua redenção que não virá gratuitamente. Esse tipo de reflexão surge na mente do narrador – e o segue por quase todo seu diário – como razão por tomar caminhos tortuosos, decisões equivocadas, atitudes irremissíveis.

O livro é de fato um diário marcado por fluxos de memória enumerados e divididos em 9 capítulos (nomeados como: Algumas coisas que sei sobre meu avô, algumas coisas que sei sobre meu pai, Algumas coisas que sei sobre mim, etc) que começam a retratar cada figura importante na vida do narrador: seu avô (que nunca conheceu), seu pai (com quem nunca teve uma relação afetuosa de verdade) e ele mesmo. A narração fragmentada não reflete uma leitura truncada, longe disso, ela flui naturalmente entrelaçando fatos, pensamentos, anotações.

Nos trechos iniciais, e ao longo desse diário, o passado do falecido avô do narrador, um judeu que viveu os horrores de Auschwitz, se revela um mistério e aos poucos mostra uma conturbada relação de silêncio entre pai e filho. A aposentadoria do avô dentro de um escritório afetou seu pai como uma sombra, ou sujeira, que jamais desaparece e que por alguma razão moldou a personalidade dele.

O pai que sempre parecera imaculado e imutável, através das conversas onde o narrador fazia o papel de ouvinte, desmorona no decorrer da primeira, e única, briga corporal entre pai e filho. A visão sobre o mundo do narrador começa a mudar ao conhecer, e realmente prestar atenção após a briga com o pai, as terríveis histórias sobre o que o avô sofreu nos campos de concentração (nunca citados no tal dicionário escrito pelo mesmo), ou seja, a sombra que consumiu o avô passou para o pai e finalmente chega ao narrador em um ciclo sem fim aparente.

Todo filho vem para redimir os pecados do pai e Diário da Queda exemplifica exatamente os fardos hereditários que assombram e influenciam a vida dos seus portadores, a inexorável busca pelo autoconhecimento – simbolizado pelo peso espiritual (ou fantasma) e histórico que passa de pai para filho -, as meditações sobre o passado e o presente que costuram três histórias em uma só, Michel Laub entrega uma prosa repleta de brutalidade e simplicidade – oscilações que soam como um lapso de memória que pode fugir a qualquer momento ou atormentar pelo resto da vida – o que torna este romance um forte candidato a livro do ano.