Para se escrever uma narrativa que tenha traços, ou esteja completamente infestado pelo realismo fantástico, é necessário apegar-se em pequenos detalhes do cotidiano, aqueles detalhes que de tão ordinários e corriqueiros passam desapercebido pelas pessoas. Julio Cortázar é um maestro no quesito das exaltações do dia a dia mesmo quando não o está transformando em algo mágico, mas apenas fantástico por soar tão familiar ao leitor. Todos os fogos o fogo, livro de contos lançado aqui no Brasil pela Civilização Brasileira, exemplifica bem esse caso nos oito contos que o compõe.

A compilação abre com A autoestrada do sul (conto que inspirou o filme – principalmente a abertura num longo travelling com 100 carros enfileirados – Weekend à Francesa de Jean-Luc Godard) que narra os acontecimentos durante um engarrafamento numa estrada da França logo após um feriado. Todavia, esse trafégo dura dias e meses obrigando cada motorista a criar e estreitar laços com seus novos vizinhos. Com essa intensificação na convivência existe a criação de um micro-estado onde há comércio e relações de poder ilustrando uma hipérbole de uma nova sociedade.

Em A Saúde dos Doentes outra hipérbole é apresentada, dessa vez uma mãe doente não sabe do trágico destino de seu filho predileto. Capazes de forjarem cartas para que a matriarca se sinta confortável, os membros da família começam uma crescente dentro desse universo de palavras falsárias. Quando estão acostumados às cartas criam uma mentira dentro de uma mentira alcançando um clima taciturno e um destino duvidoso: quem responderia ao remetente? A enfermidade continua nas páginas de Senhorita Cora, enquanto um garoto está na sala de operações para a retirada do apêndice e diversas vozes vem para provocar o leitor. Cada narrativa traz um ponto de vista sobre outro personagem e todas participam dos mesmos parágrafos.

A Ilha ao Meio-Dia e Instruções a John Howell mexem com o destino: como pensaremos sobre tal se olhamos sempre pela mesma perspectiva ou será que somos apenas vítimas de nosso próprio conformismo? Contudo, O Outro Céu conta as rememorações de um rapaz sobre um mundo de prostituição (e seu amor por uma menetriz), cafetões e assassinos e um mundo seguro onde sua única preocupação é beber e decidir se o seu voto fará diferença ou será em branco.

Os dois melhores contos desse volume estão a cargo de Todos os fogos o fogo, duas histórias desconexas e de um valor simbólico sobre paixões e mortes que só podem ser explicadas por seus finais trágicos e tangentes – causando um efeito vertiginoso. Reunião é uma homenagem à figura de Che Guevara, narrador da história que não é identificado pelo nome, mas sabendo um pouco sobre a história da revolução cubana é possível reconhecê-lo. Ele está em uma crise de asma e num delírio febril que o faz variar entre os extremos da falsa moralidade e das normas da sociedade.

Todos os fogos o fogo constitui em narrativas que atormentam os calmos e acalmam os mais tensos sem deixar de explorar em suas próprias estruturas grandes momentos do ordinário. Aqui o destino assombra e participa ativamente na vida de cada um dos personagens dessas oito histórias tão similares a realidade.