O presente texto visa fazer uma leitura do poema “Os sapos”, de Manuel Bandeira, analisando, para tanto, os aspectos formais do poema, o processo de escrita vinculado às ideias defendidas pelos escritores modernistas e as ideias sobre poesia e realidade que se podem depreender do poema.

Dentre as muitas bandeiras que o Modernismo defendeu, em sua primeira fase (1922-1930), destaca-se o combate às características estéticas tradicionais e conservadoras (cujo melhor exemplo era o Parnasianismo. Foi a chamada fase heróica do Modernismo brasileiro.[1]

Nessa perspectiva, o poema “Os sapos”, de Manuel Bandeira, pode ser visto como uma paródia do poema “Profissão de fé”, de Olavo Bilac, na medida em que se distancia ideologicamente do proposto por esse texto literário, o que se evidencia desde a primeira estrofe do poema modernista, pois nela, os termos mitológicos são substituídos pela prosaica presença dos sapos, o que pode representar, metaforicamente, que aqueles que se julgam deuses, criaturas sublimes, que possuem “status” elevado, não passam de seres rebaixados, que vivem à margem  dos rios, no brejo, em outras palavras, à margem da sociedade.

Em uma época que a sociedade estava passando por grandes transformações, crescente industrialização, que junto com o progresso acabava por trazer consequências desagradáveis, no final do século XIX e início do século XX, os poetas parnasianos cantavam a forma perfeita de produção poética, os campos,  cultuavam a Antiguidade clássica, entre outros temas, todos à margem do contexto sociocultural da época. Os sapos, metaforicamente, os parnasianos, cantavam sozinhos, à beira da sociedade.

O poema de Bilac, que possui um cunho metalinguístico, apresenta uma linguagem excessivamente formal, presa às regras, à metrificação rígida, que apresenta-nos uma analogia entre o fazer poético e o lapidar de pedras preciosas, na qual a função do poeta seria semelhante à função de um ourives-joalheiro, como se pode observar em:

Torce, aprimora, alteia, lima

A frase; e, enfim,

No verso de outro engasta a rima,

Como um rubim.

Manuel Bandeira, em seu poema, ao escrever versos em redondilha menor, isto é, versos de cinco sílabas,  retoma o modelo de escrita parnasiana, em especial a do poema “Profissão de fé”, e subverte esse modelo apresentando uma irônica metalinguagem e visível intenção de satirizar os parnasianos.[2]

No âmbito formal, “Os Sapos” é composto por 14 estrofes, treze quadras e um terceto, sendo que os versos são regulares, metrificados em redondilha menor. Esse poema possui o esquema de rimas ABAB, com exceção da oitava estrofe, que podem ser classificadas como rimas externas, cruzadas ou alternadas.

Quanto a semelhança de letras, as rimas desse poema podem ser classificadas como rimas consoantes, como se pode observar em:

O meu verso é bom

Frumento sem joio.

Faço rimas com

Consoante de apoio

Nessa estrofe, é possível perceber a semelhança entre as consoantes e as vogais entre palavras “bom” e “joio” e  “bom” e “com”.

No que concerne a classificação das rimas contidas em “Os sapos” ocorre uma mescla,  há a presença de rimas ricas e pobres, embora a maior parte desse poema  seja composta por rimas ricas.

Na estrofe:

Que soluças tu,

Transido de frio,

Sapo-cururu

Da beira do rio

tem-se a presença de rimas ricas, pois as palavras constituintes das rimas “A” e “B” pertencem a categorias gramaticais diferente. No primeiro caso, as rimas “A”, são compostas pelos vocábulos “tu” e “cururu”, sendo  o primeiro  um pronome pessoal do caso reto e, o segundo,  um substantivo, integrante da expressão “sapo-cururu” que é um substantivo composto. Quanto às rimas “B”, a palavra “frio” é um adjetivo e a palavra “rio” é um substantivo.

As rimas pobres, geralmente, aparecem nesse poema em meio às rimas ricas, em uma mesma estrofe. Fato esse que pode ser observado em:

Vede como primo

Em comer os hiatos!

Que arte! E nunca rimo

Os termos cognatos!

Nessa estrofe, as rimas “A” são consideradas pobres, pois as palavras “primo” e “rimo” pertencem a mesma categoria gramatical, são substantivos, e as rimas “B”, compostas pelas palavras “hiatos” e “cognatos” são consideradas rimas ricas, porque a primeira é um substantivo masculino e a segunda é um adjetivo.

A partir da presença desses dois tipos de rima, pode-se inferir que, metaforicamente, elas podem representar  os dois estilos de época apresentados pelo poema: o Parnasianismo e o Modernismo.

Nessa perspectiva, as rimas ricas seriam o Parnasianismo, manifestação poética que primava pela métrica, privilegiava as rimas ricas, tinha um excessivo apego à forma, chegando, muitas vezes, a endeusá-la. No nono verso do poema, por exemplo, “o sapo tanoeiro” é entendido, por muitos críticos literários, como uma alusão à Olavo Bilac, um dos poetas brasileiros mais conhecidos pelo culto a forma, a palavra esnobe, a métrica rigorosa e à rima rica.

Em contrapartida, as rimas pobres seriam o Modernismo, que tinha como uma de suas características a opção pela liberdade, seja de conteúdo seja de forma da poesia. Tal movimento pouco se importava se as rimas eram ricas ou pobres. Em muitos textos poéticos dessa época, o que se nota é a presença de versos livres, sem rimas, em um tom prosaico que exalta “a delícia de poder sentir as coisas mais simples”, tônica do poema Belo Belo.

Pautado por esse propósito, em “Os sapos”,  Bandeira retoma o modelo parnasiano de escrita para criticá-lo. Assim, ao referir-se, na quarta estrofe do poema, aos hiatos, o poeta efetivamente “come” a separação silábica dessa  palavra “hiato”, transformando-a em ditongo ( o verso é de 5 sílabas: em-co-mer-os-hia/ [tos]).

Ainda sobre a forma do poema é relevante ressaltar o uso de travessões em algumas estrofes, o que sugere um tom de diálogo, recurso discursivo usado nos textos em prosa, tom esse louvado pelos modernistas, o que dá ao poema uma roupagem de manifesto, que se constitui por meio da proposta do diálogo com o mundo, pois a linguagem funciona como uma mediadora da relação do homem com o mundo, estabelecendo, assim, uma  relação entre poesia e realidade.

Essa mediação, feita pela palavra, segundo a estética modernista deve ocorrer para todas as instâncias da realidade, para todos os temas, inclusive os não universais, os mais simples. Em suma, os modernistas posicionavam-se como pessoas que estavam fartas do lirismo que não representa o homem. Para eles, o lirismo deveria ser como a condição humana: livre.

Assim, a poesia deve ser livre para retratar a realidade, não tomando para si a  obrigação de ser “frumento sem joio”, ou seja, retoricamente perfeita. A perfeição poética se faz no contexto, na relação estabelecida entre o poeta e o leitor, mediada pelo texto.

Para Saussure, citado por  Alfredo Bosi, em “O tempo e o Ser da poesia”, “a linguagem humana é pensamento-som”. Nessa perspectiva, em “Os sapos”, no verso trinta e um, “- ‘Não foi!’ – ‘Foi!’ – ‘Não foi!'” pode-se perceber a presença, a influência do som,  pois sem quebrar a métrica, ( versos pentassílabos) as palavras sugerem uma onomatopéia, o coaxar dos sapos.

Enfim, nas últimas duas estrofes do poema, ligadas por um encavalamento, situando-se no “Perau profundo”, isto é, no barranco ou falso caminho, o sapo cururu é o solitário poeta, que conclui o poema com palavras que evocam o cancioneiro popular.

Bandeira, operando com a paródia, trabalha com materiais que ele mesmo desqualifica, isto é, os cacoetes parnasianos (formalismo exagerado) como observou Murilo Marcondes de Moura, que associa o poeta ao sapo cururu, pois “esse estar apartado e ser portador de uma palavra fraterna, estar esquivo mais próximo, é propriamente um lugar de eleição em Bandeira.”[3]

Atentando-nos, mais uma vez, para a questão da marginalidade, é possível inferir, que em questão de rigor  estético, o Modernismo está à margem da estética parnasiana, mas quanto à representação da realidade, a estética Modernista é mais fiel, pois por mais que tentemos, não conseguimos moldar a realidade à nossa maneira, pelo contrário é ela quem nos molda ao seu “bel prazer”. Um poema metricamente perfeito pode ter um valor estético inestimável, mas não seria muita pretensão pensar que a realidade é padronizada? Isso não seria ignorar a diversidade de formas de se expressar a realidade? Talvez precisemos de uma boa e eficaz chuva de sapos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Minidicionário Aurélio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

GOLDSTEIN, Norma. Versos, sons, ritmos. São Paulo: Ática, 1985.

MACIEL, Luiz Carlos Junqueira. Volúpia constelada: uma leitura de Melhores Poemas de Manuel Bandeira. In: Cadernos de Literatura Comentada. Belo Horizonte: Horta Grande, 2003.

MAIA, João Domingues. Português: volume único. São Paulo: Parma, 2001. Série: Novo Ensino Médio.

Sobre o autor: Cleonice Machado é mestranda em Literaturas de Língua Portuguesa, com ênfase em Literaturas Africanas. Acredita que isso seja informação demais. Para o caso de não ser uma overdose de informações, é, também, apaixonada por Futebol e Política. Quando não está no Mineirão, assistindo aos jogos do Clube Atlético Mineiro, ou nas ruas, militando, é professora de Literatura. Mas, sem ingerir quantidades cavalares de café, “não sou nada, nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”. Vocês a encontram no twitter como @cleoamachado


[1] MAIA, 2001: 308-309

[2] MACIEL, 2003: 11