No dia 3 de julho de 1883 nascia na Áustria-Húngria (atual República Tcheca) o escritor Franz Kafka. Para comemorar essa data, a Equipe do Meia Palavra vai falar de uma das obras mais conhecidas do escritor: A Metamorfose. É frequentemente citado como uma das obras seminais das narrativas curtas do século 20. Ganhou tamanha notoriedade que é estudada e discutida até hoje. Publicada em 1915, sob a alcunha germânica de Die Verwandlung, a novela conta a história de um caixeiro-viajante, Gregor Samsa, ao acordar e ver-se transformado em um inseto monstruoso.


Felippe: Gregor Samsa talvez não soubesse quais eram seus medos e anseios mais íntimos até acordar metamorfoseado em um inseto. Nunca sabemos ao certo que espécie ele se tornou, apesar das inúmeras teorias. O que vale aqui é o isolamento sentimental e os pensamentos do porquê tal mudança ocorreu após os sonhos inquietos de uma noite. Será que o descaso e pressão do seu chefe tenha o diminuído a um inseto? Ou será que só como um monstro gigante ele poderia chamar a atenção do pai mesmo que esse ao vê-lo em sua nova couraça queira arrebentá-lo com uma maçã? Ou sua irmã que, antes isolada, estreitou os laços com a família como se um acidente tivesse deixado Gregor inválido. Também podemos dizer que essa mudança seja um castigo para o personagem principal por seu cotidiano tão exemplar e dotado de enumeradas funções “automáticas”. Esse castigo é por ele afastar-se da condição humana que é a convivência com seus semelhantes. Ele trabalha porque precisa trabalhar, mas sabe por quê trabalha? Histórias são contadas para representar as mudanças de um personagem, seu crescimento dentro do enredo. Contudo, a mudança de Gregor, após um tempo torna-se um incomodo, ele não é mais necessário à família e a convivência tornou-se insuportável. A transformação do nosso protagonista, fisicamente, acontece na primeira linha para em seguida mudar suas características psicológicas (depressão, talvez?) e as vidas das pessoas a sua volta. Ou seja, todos os personagens evoluem de alguma maneira e se julgam totalmente desprendidos daquele ser repugnante. É interessante analisar que A Metamorfose não trata daquela transmutação – que não é explicada em nenhum momento, mas por pequenos trechos de vidas fragmentadas que podem ou não se juntarem e criarem certa independência do personagem principal, vítima de um acaso, destino ou castigo divino que ele mesmo se impôs subconscientemente.

Anica: Acredito que A Metamorfose seja um dos melhores exemplos de como livros possuem tanta força que conseguem entrar no imaginário coletivo, mesmo que várias pessoas não tenham lido a obra. A ideia do sujeito que acorda e se vê transformado em um inseto é repetida tantas vezes em nossa cultura, ecoando em tantas homenagens, referências e pastiches, que não dá para negar a importância desse trabalho de Franz Kafka. É curioso também refletir sobre a questão do imaginário coletivo, que volta e meia relaciona a transformação de Gregor Samsa em barata, quando o termo utilizado pelo autor foi ungeheueren ungeziefer, o que traduzindo literalmente seria “monstruosa sevandija”, um parasita ou verme imundo (para mais informações sobre isso, leia a Revista da Língua Portuguesa de outubro de 2005). O que nos levou do verme/parasita para uma barata? Nesse processo de tradução e recepção do texto, temos uma brincadeira em que o transformado Gregor se transforma mais uma vez para o leitor, que recebe o livro com uma carga de anos de outras leituras/traduções.

Luciano: Franz Kafka é, indubitavelmente, um dos maiores escritores do século XX. O maior de todos, para mim. Apesar de não ser minha história favorita dele, é provavelmente a mais icônica. O caixeiro-viajante que, um dia, vira inseto (a acepção mais comum é que seja uma barata, mas existem acirradas discussões sobre o assunto, inclusive uma das hipóteses mais aceitas é que se trate de um Digitonthophagus gazella, mais conhecido como besouro rola-bosta) é a uma das melhores imagens do ser humano no século XX- e continua sendo no século XXI. O judeu que não era judeu, o rebelde que não sabia se rebelar, o filho que era parte da família, o irmão que não conseguia retribuir. Esse era Gregor Samsa, mas podia facilmente ser o próprio Kafka. Poderia, aliás, ser qualquer um.

Liv: O livro foi lançado em 1915, mas ainda hoje, em 2011 gera polêmica. A alegoria do sujeito que se vê oprimido pelo sistema e a família e acaba se transformando em um inseto. E quanto mais desagradável (e quem se agradaria em viver com um inseto?) se torna a aparência dele, mais isolado fica. Em uma sociedade de concorrência na qual vivemos, onde profissionais são cada vez mais sobrecarregados por suas atividades laborais, é fácil de imaginar um Gregor Samsa perto de nós. Ou em cada um de nós.

Lucas: Não foi a toa que A Metamorfose passou para a galeria dos clássicos da literatura mundial. Apesar de curto, o livro consegue metamorfoseadamente (para abusar da aliteração) traduzir a angústia de muita gente. O detalhe é que, no caso de Kafka, a condição familiar e histórica, aliada a narrativa lacônica, fria e genial do autor, consegue fazer a exclusão e o sentimento de não-pertença serem levados às últimas e trágicas consequências. Aqui a angústia dessa condição se materializa quando Gregor Samsa acorda transmutado em um inseto, que se vê cercado de repúdios por todos os lados, desde sua família até a sociedade da qual faz (ou fazia) parte. Acaba que, a exemplo do fatalismo de outras obras de Kafka, a realidade acabe se mostrando mais forte e sufocando Gregor Samsa, afinal, não há espaço para finais felizes em Kafka.

Tiago: “Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em seu cama metamorfoseado num inseto monstruoso”. Todos conhecem esse começo. No entanto, o horror se encontra no restante do livro e na terrível perspectiva de que é sempre possível voltar a lê-lo. Ser transformado em inseto não é tão horrível assim, apesar do que dizem as rodas de transmigrassões das religiões orientais ou do espiritismo. Ser transformado em inseto por Kafka – esse sim é o inferno sem fim: “Quando certa manhã Gregor Samsa acordou…”

Dindii: A narrativa do caixeiro-viajante Gregor Samsa, que depois de uma noite de sonhos perturbadores acorda transformado em um grande inseto, pode ser vista de forma universal em muitos aspectos, ao meu ver. Isso porque o personagem não demonstra apenas medos da sua metamorfose, mas também reflete sobre sua situação no emprego explorador e na sua relação com a família, de forma que eu enxergo essa mudança física como uma metáfora das inquietações psicológicas do personagem, que podem passar também na cabeça de qualquer um de forma atemporal. As preocupações do homem do século XX podem ser diferentes da do homem atual, mas o sentimento em relação a isso é o mesmo. No caso, Gregor Samsa se vê na forma de um inseto (algo como uma barata gigante), invertebrado, com patas desengonçadas que se movem rapidamente e sofre rejeição pela família, sendo esta, talvez, a melhor forma para expressar a extensão de seus sentimentos perante o mundo.

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