Há alguns dias estava dando uma olhada no top 100 Livros de Ficção Científica e Fantasia da NPR Books e fiquei feliz em descobrir que pelo menos no topo do ranking tinha lido boa parte das obras. Do “resto” eu pelo menos ouvi falar de 90%. Sempre gostei de Ficção Científica, mas o fato é que não dedico lá muito tempo para ler obras do gênero, hábito que pretendo corrigir daqui em diante. A propósito, Fahrenheit 451 está na sétima posição.

A Ficção Científica causa reações das mais diversas nos leitores, reações essas que vão desde a já clássica “torcida de nariz” até a mais entusiástica celebração. Mas, esteja você na primeira ou na segunda categoria, acho que deveria dar uma chance para Fahrenheit 451, do autor norte-americano Ray Bradbury. Dificilmente você vai ter uma reação tão simples como as duas supracitadas.

O protagonista da história é Guy Montag, um bombeiro, que vive uma vida medíocre, alternada com seu trabalho, queimar livros (sim, ironicamente Bradbury chama de bombeiros os responsáveis por queimar livros!); e sua esposa, que constantemente o cobra para comprarem mais uma “TV-parede”, aparelho que permite a comunicação com a “família”: outras pessoas que conversam através da TV.

A pulga atrás da orelha de Montag é alocada lá quando Clarisse, sua vizinha, com toda a sua não-convencionalidade de comportamento, desperta a curiosidade de Montag sobre uma porção de coisas, como olhar para as estrelas, andar devagar, contemplar a realidade circundante etc., ou seja, tudo o que o status quo vê como vagabundagem ou subversão.

A sociedade distópica que Bradbury criou tem como uma de suas marcas mais contundentes a prática de incendiar livros. A temperatura que dá título à obra é justamente aquela em que o papel se inflama. Aliada a essa prática vem outras, cujo fulcro principal é inibir toda possível forma de questionamento de modo a gerar um conformismo tal que os sujeitos mais se assemelham a formas de vida amorfas do que seres humanos.

Tal como em 1984, onde encontramos Winston Smith manipulando informações para “alterar” o passado, também em Fahrenheit 451 percebemos mecanismos maquiavélicos de cercear os pensamentos e canalizar o senso comum para que realidades passadas, memórias ou frutos de reflexão, deixem de fazer sentido e se tornem impressões descabidas. É dessa forma que pouquíssimas pessoas se lembram de que houve um tempo em que bombeiros apagavam o fogo e não o produziam ou que carros andavam menos que 150 ou 160 quilômetros por hora, visto que essa é, em média, a velocidade com que se movem na realidade bradburyana.

Com a semente do questionamento plantada, não leva muito tempo para que as raízes penetrem no cérebro de Montag e ele passe de destruidor de livros a curioso, e daí a opositor aberto da tirania bibliofóbica. É nesse embalo que ele recebe duras de Beatty, um dos arautos da queima de livros, que defende a inutilidade dos livros; e conhece Faber, um dos poucos que se lembra do potencial que possuíam os livros, que vive aterrorizado pela opressão sistemática contra suas concepções e antigo modo de vida.

Bradbury criou uma distopia com contornos de pesadelo, onde a queima de livros é um dos pilares de sustentação da ignorância. Procura-se violentamente substituir o livro pela televisão, na qual a dominação é mais eficaz e as liberdades de reflexão são toldadas pelo fluxo contínuo de imagens e de espetáculo. A esposa de Montag é o arquétipo da alienação, estando completamente incapacitada de pensar criticamente sua própria realidade circundante, quem sabe nem mesmo enxergar essa realidade ela possa, tão absorta encontra-se em seu mundinho televisivo.

O autor disse que ao escrever o romance quis dar cores ao melancólico processo de disseminação da televisão e encolhimento das perspectivas dos leitores e amantes de livros. Não se pode dizer que não haja uma boa porção de verdade por trás das cores ficcionais que dão o tom do livro. Longe de ser meramente escapismo, em Fahrenheit 451 a Ficção Científica serve a nossas próprias faculdades reflexivas, fazendo-nos enxergar nosso mundo de um outro prisma. Esse prisma é assustador o suficiente para provocar ao menos uma fagulha, não para queimar um livro, mas quem sabe para acender uma tocha que nos permita enxergar além.