Há exatos 111 anos morria em Paris um dos maiores escritores de língua inglesa já conhecidos: Oscar (Fingal O’Flahertie Wills) Wilde. Dono de uma biografia que não deixa nada a desejar aos melhores textos que escreveu, Wilde é um daqueles casos típicos em que a armadilha de recorrer à vida para explicar a prosa torna-se quase inevitável. É o que fica ainda mais evidente quando lemos seu único romance, O retrato de Dorian Gray, publicada originalmente na Lippincott’s Monthly Magazine em 20 de junho de 1890 e depois ganhando versão revisada em abril de 1891.

Sobre as personagens do livro certa vez Oscar Wilde disse: “Basil Hallward, é como penso que sou, Lorde Henry Wotton é como as pessoas pensam que sou e Dorian é como gostaria de ser com outra idade.”  Um erro bastante comum do leitor que mistura vida e obra é automaticamente relacionar Alfred Douglas (o Bosie, com quem Wilde teve um romance) com Dorian. Nesse caso, vale a pena chamar a atenção para o fato de que O retrato de Dorian Gray foi escrito um ano antes de Wilde conhecê-lo. São detalhes e opiniões sobre a obra que nós e colaboradores falamos a seguir.

Liv: Wilde, com esse livro, nos deu de presente um dos personagens mais peculiares da literatura. Dorian é um jovem apaixonado por si e sem redenção ou esperança. Ao mesmo tempo que seduz Basil durante a pintura de seu retrato, se deixa seduzir por Lord Henry e segue em um caminho sem volta rumo ao luxo, a beleza e aos prazeres da vida. A todo momento o jogo de ideias se faz presente e até o fim da história, nos traços das personalidades complexas dos protagonistas aparecem. O Retrato de Dorian Gray é um grande livro complexo e polêmico, que nos conduz por temas como: beleza, paixão, decadência, inteligência e homossexualismo. É como disse certa vez o próprio autor “Não existe livro moral ou amoral. Os livros são bem ou mal escritos. Eis tudo.” A história de Dorian Gray é única e é bem escrita.

Felippe: O retrato de Dorian Gray é uma obra diretamente ligada a formação de um personagem. Em todas as histórias um personagem tem dois objetivos, um consciente e outro inconsciente que o transformará durante a narrativa. Porém, para o belo e jovem Dorian Gray o inconsciente domina seu consciente transformando sua personalidade inocente – sua juventude – em um estado pecaminoso constante onde sua personalidade se distorce. Não há mais a naturalidade de ser bom apenas a vontade de eliminar sua maldade através de atitudes forçadas. Seria o bem, então, um ponto de vista que cada pessoa pode distorcer como quer e atitudes altruístas são deveras egoísmo para salvar-se perante a imagem da sociedade e seu laço eterno com Deus. Uma guerra entre pensamento e sentimento, qual deles é que influencia a imoralidade ou os pecados do homem? Pensar em ser mal? Jamais. O crescimento de Dorian como pessoa o transforma em um poço de mesquinharia, um verdadeiro monstro, que reconhecemos como uma pessoa que não conhecia a realidade, ou parte dela – afinal, quem a conhece como um todo? -, do mundo dos homens.

AnicaO Retrato de Dorian Gray foi meu primeiro contato com Oscar Wilde e foi também uma paixão instantânea. Nem tanto pelo protagonista, muito mais por Lord Henry, que até hoje em dia está na minha lista de personagens favoritos da literatura. É por causa dele que Dorian se dá conta que um dia envelhecerá e não será mais belo, e como consequência é por causa dele que Dorian fará o “pacto” que consiste em seu quadro carregar as marcas que seus (maus) atos acabam deixando em seu rosto. E é da boca de Lord Henry que saem muitas das frases mais célebres de Oscar Wilde, como por exemplo a famosa “A única maneira de se livrar de uma tentação é entregar-se a ela”. É impressionante como através de uma personagem Oscar Wilde consegue deixar tantas amostras de seu senso de humor apuradíssimo, tanto quanto sua inteligência. Sem pensar duas vezes recomendaria para qualquer um que estivesse buscando conhecer a obra do autor, é um dos melhores começos possíveis.

Kika: Li Dorian Gray depois de ler o De Profundis, e já comecei a história com uma pulga atrás da orelha. O quanto Dorian se pareceria com Bosie, e o quanto de Oscar Wilde encontraria em Lord Henry? Apesar desta leitura, digamos, orientada, este que é o único romance de Oscar Wilde me arrebatou. O autor, apesar de todo parnasianismo declarado – a arte vale por ela mesma – é um profundo conhecedor do caráter humano, e faz de “O Retrato” uma fantástica exposição da corrupção humana frente ao Poder e a Beleza. Oscar Wilde trata as rugas como “linhas da vida”, sofrimentos e degradações que aos poucos destroem a beleza física. Com as consequências de uma vida desregrada transferidas para o retrato, Dorian aos poucos se transforma numa criatura vil, de aparência angelical, num redemoinho de acontecimentos que culmina num dos finais mais sublimes da literatura mundial.

Luciano: Oscar Wilde é kitsch. Um hedonismo exagerado, uma supervalorização da arte e da estética, a desconstrução nem um pouco cuidadosa dos valores burgueses: isso é tudo que Doran Gray, sob a tutela de Lord Henry, faz. Tem a sorte, porém, de não sofrer as consequências de seus atos. Ele se torna o que todo poeta romântico gostaria de ser. Nessa caso, porém, o kitsch atinge níveis de genialidade que são raros, tanto antes quanto depois. De uma só vez Wilde ataca, de modo bastante certeiro, a sociedade burguesa da época e também os artistas que, em seus sonhos romanticos e um tanto quanto adolescentes, acreditavam-se os salvadores da alma humana, os destruidores da moral dessa mesma sociedade e anunciadores de um novo homem.

Mavericco: A lenda do Doutor Fausto é uma das mais férteis da história da literatura, encontrando ecos em autores diversos como Marlowe, Goethe, Thomas Mann, Fernando Pessoa ou Guimarães Rosa. O pacto demoníaco de um homem que já havia alcançado o limite do saber humano, e que busca usufruir dos prazeres nunca antes desfrutados. O Fausto de Pessoa busca compreender o Mistério por detrás de todas as coisas; o de Goethe, por um instante de felicidade que o faça dizer “chega!”; o de Mann, pelo tempo suficiente até a conclusão de sua obra máxima. E Oscar Wilde, em seu O Retrato de Dorian Gray, parece recontar-nos a lenda a partir da beleza de um homem, ou, simplesmente a Beleza. O quadro pintado por Basil Halward, tendo como modelo o jovem Dorian Gray, que, por sua vez, desperta a atenção de Lord Henry Wotton, faz com que a engrenagem da obra inteira se movimente. No caso da lenda do Dr. Fausto, devemos destacar três personagens essenciais: o Fausto, o Mefistófeles e a Feiticeira, no episódio do rejuvenescimento de Fausto. Oras: Dorian Gray, cada vez mais fascinado por Lord Henry, adentra-se na sociedade (ou o “pequeno mundo”, como diria Goethe) com o objetivo único e exclusivo de perseguir a beleza e o prazer. E este mesmo jovem, graças a Basil, tem sua beleza perpetuada enquanto o quadro sobreviver: pois, da mesma forma, Fausto só pode usufruir dos prazeres do pequeno mundo oferecidos pelo demônio enquanto ele se sentir apto a tal coisa (pois é Fausto quem está, a princípio, no comando da situação, como nós por vezes pensamos ser Dorian quem exerce fascínio em Lord Henry). Não é por acaso que, na versão de Goethe, na cena da Feiticeira, Fausto fique encantado vendo ora sua imagem no espelho, ora a imagem da mulher mais bela que ele jamais vira… Na obra de Wilde, esta mulher, Sybil (a Sibila de Cassandra?), é bela para Dorian enquanto ela se demonstra também como uma cultora do Belo. Quando ela faz um papel ruim em “Romeu e Julieta”, ela merece o desprezo de Dorian: pois da mesma forma como a beleza de Dorian sobrevivia num quadro, a beleza de Sybil deveria também sobreviver em suas atuações. E, por consequência deste desprezo, é Dorian quem se recusa a fazer o papel de Romeu nesta história de amor com Sybil (quando na verdade Sybil morre fazendo o seu). O destino de Dorian Gray, assim sendo, que sobrevive numa obra de arte, num Retrato (uma das metáforas mais intrigantes acerca da literatura), é fazer de seu último ato algo ainda mais paralelo com a ação do Doutor Fausto de Marlowe: tentar queimar os livros em que consumara o pacto; mas ser levado, pois o fora consumado, e de forma irremediável, por aquilo que ele próprio havia cultivado e cultuado.

Clara V. : Um livro perfeito. Assim eu definiria, em poucas palavras, O Retrato de Dorian Gray. Fica difícil imaginar uma pessoa, que goste ler, para quem eu não indicaria essa obra já que ela é, sob vários aspectos, admirável. Seja por nos fazer refletir sobre assuntos como a beleza (exterior e interior), o egoísmo, a juventude, a arte, a humanidade; por seus personagens memoráveis (e não me refiro apenas ao soberbo Lord Henry); por suas descrições e diálogos precisos (e preciosos, muitas frases do livro tornaram-se conhecidas como “citações” do autor) ou pelo final da história, esperado, mas ainda impactante. Quando se fala em “clássicos da literatura”, dos primeiros livros que me vem à mente é essa obra prima de Oscar Wilde.