Quando li pela primeira vez Lourenço Mutarelli, o filme baseado em sua obra, “O cheiro do ralo”, estava em alta. Até aquela época, nunca tinha ouvido falar do autor, ator e quadrinista – essa primeira faceta ficou desconhecida até o dia de hoje, quando resolvi folhear “Quando meu pai se encontrou com o ET fazia um dia quente”, seu trabalho mais recente em HQ lançado pela Quadrinhos na Cia. esse mês. O lançamento ocorreu no último sábado, 10/12, e contou com diversos autores de HQ’s, como Gabriel Bá, Fábio Moon, Yuri Moraes, e de escritores, como Marçal Aquino – a quem esse trabalho inusitado é dedicado.Nesse encontro ainda foi possível conferir um documentário acadêmico sobre o autor intitulado A Vida com Efeito, dirigido por Eduardo Liron, onde Mutarelli fala sobre seus trabalhos, mostra alguns de seus cadernos e se emociona ao falar sobre sua esposa e filho – um mergulho na intimidade do autor que sempre aparentou cautela e pouca abertura pessoal em suas entrevistas. Ao ver esse trecho do documentário, parei para pensar o quanto a reclusão do autor (que alguns anos atrás teve um bloqueio criativo) o tem ajudado a explorar a solidão e o silêncio em um patamar mais elevado em suas obras. Ao ler a HQ é quase impossível não imaginar toda a carga emocional com que ela foi concebida – desde o momento de ficção científica (ou loucura?) até o distanciamento entre pais e filhos – quem abandona quem? -, onde os primeiros não são mais herois, mas mesmo assim impregnam sua prole, e como o silêncio de muitos anos pode ser agravado após acontecimentos naturais em que diálogos mecânicos se fazem necessários.

Engana-se aquele que espera uma obra de ficção e de puro devaneio, não existe suspense algum sobre o ET em si, isso serve apenas para ilustrar o desapego entre um filho que desde o princípio da narrativa parece querer guiar o leitor a um caminho quase que óbvio sobre os acontecimentos na vida do pai. É também dentro dessa narrativa de rememoração e descobrimento que Mutarelli acerta ao carregar duas ou três linhas com uma explicação curta, simples, mas incrível sobre como filhos enxergam os pais não como indivíduos, mas como uma coisa só – uma unidade inseparável, um ser híbrido.

A obra de Mutarelli pode ser classificada como torta, quem não está familiarizado com seus trabalhos pode estranhar os anti-herois imersos em questões existenciais que flertam com a loucura. Se em “O natimorto” a loucura é crescente e em “Nada me faltará” ela é apenas um detalhe, em “Quando meu pai se encontrou…” o título sugere o que acontece e logo na primeira página nos deparamos com um ET e um homem, mas sem balões ou histórias. Cada página é um quadro, uma arte que ilustra algo para o leitor, porém, não faz sentido com a narração em terceira pessoa. Isto é, os quadros, a narração e os balões estão deslocados e são anacrônicos – um toque genial para entrelaçar e tanger a fantasia surreal e a realidade intrínseca no cotidiano e para atordoar os que estão lendo (é difícil associar um quadro de um corpo no IML e de uma pessoa, um parente próximo, sorrindo para este sem saber se é uma satisfação ou alguém realmente inconformado).

Em cada uma de suas páginas é possível contemplar a arte como se ela dissesse muito mais do que a narrativa pode dizer, traços detalhados – uns realistas, outros surreiais – que transpõem quase como um silêncio. A potência de transformar uma rotina pacífica e chata em um verdadeiro acesso de insanidade e dúvidas é o que faz “Quando meu pai se encontrou com o ET fazia um dia quente” ser mais um exemplar indispensável para quem quer conhecer a obra de Lourenço Mutarelli – um autor que transforma linhas sucintas em verdadeiros tornados de emoções.