Uma das vozes mais tonitruantes da literatura norte-americana atual é Don DeLillo. Suas abordagens sobre as peculiaridades da vida norte-americana, sobre as crises que vêm abalando o centro da economia mundial e seus efeitos nas micro-trajetórias de sujeitos inseridos nesse contexto tem revelado detalhes interessantes sob um viés crítico e ressonância mundial no sentido humano. Apesar das críticas dirigidas a ele (e à literatura norte-americana em geral) sobre o arrefecimento de combatividade e insularização de certas perspectivas, ele se mantém como um dos sérios candidatos ao Prêmio Nobel de Literatura, pela consistência de sua produção.

O livro Cosmópolis, lançado em 2003, nos conta a história do multimilionário Eric Michael Packer, que certo dia resolve cortar o cabelo. Apesar da proposta da trama parecer ser insossa, os desdobramentos da decisão do protagonista nos levam a uma travessia tresloucada pela Nova York do ano 2000.

Ao descer do arranha-céu onde mora, Packer encontra diversas limusines estacionadas, e decide por uma, para que essa, apesar do trânsito truncado de uma Nova York visitada pelo Presidente, o leve ao cabeleireiro no qual está acostumado a cortar os cabelos. Conforme a travessia vai avançando, DeLillo nos conduz por um cenário urbano caótico e frio, que transparece nitidamente o cenário em que se está “sozinho na multidão”. A individualidade exacerbada ajudou a criar a precária sociabilidade e o ambiente de solidão da metrópole.

A história se une em Packer, o protagonista, mas se desenrola em dois âmbitos diferentes: a travessia dele pela cidade e o acompanhamento que esse mantém em relação à oscilação do preço do iene e das ações da bolsa de valores. Packer é o típico capitalista especulador que se vale das oscilações e flutuações dos preços para construir sua riqueza. Vive numa crise de consciência similar a de Richard Gere em Uma Linda Mulher, já que não constrói nada, não conhece os frutos de seu trabalho, por isso sua própria identidade é fragilizada.

DeLillo acerta ao narrar a história usando uma porção de termos técnicos, sintomas de uma tecnologia que nos cerca como um Grande Irmão, toldando-nos a reconhecer sua “primazia morta” frente a nossa falibilidade viva. Como disse Salman Rushdie, DeLillo é o “poeta da nossa desumanização”, ele explora o ethos caótico e incômodo que a modernidade trouxe em seu bojo, o mundo que ela veio a criar com toda a sua tecnologia, individualismo e efemeridade superficial.

Ao tratar as coisas por termos técnicos, DeLillo as desumaniza, mostrando a forma como características intrinsecamente humanas são tratadas com a frieza distante (e mórbida) do jargão técnico-teórico. Ao tratar o ser humano como um apanhado de células, tecidos e órgãos, por exemplo, ele deixa de lado a consciência, o espírito, a humanidade em sua excelência. Isso é muito emblemático na medida em que é algo que parece ser “antigo” ou “ultrapassado”, como conversar com alguém na rua ou parar o dia para sentar e relaxar, por exemplo, mas que necessita ser vivificado de alguma forma, para nos lembrarmos que somos seres sociais por “natureza”.

De uma forma tragicômica (e um tanto bizarra), Packer encontra esse contato ao realizar um exame de próstata. Enquanto anda na rua, cercado de pessoas por todos os lados, ele se sente sozinho, não pode sequer tocá-las; mas ao fazer o exame, por mais automática e profissional que seja essa relação, é lá que ele encontra o contato humano. Bizarramente expressivo.

Algo semelhante se dá quando Packer chega ao cabeleireiro, que tem um estabelecimento singelo e humilde: a vida de seu proprietário, apesar dos percalços e da falta de glamour perante a carreira especulativa de Packer, faz mais sentido (na acepção mais elementar e ontológica do termo) do que a existência do multimilionário. Apesar da tarefa simples, o cabeleireiro tem uma certa estabilidade proporcionada pelo conhecimento de seu ofício e a manutenção de uma certa autonomia. Ao contrário, Packer encontra-se escravizado e atormentado o livro todo pela oscilação do preço do iene, vivendo uma vida instável, que pode torná-lo milhões de dólares mais rico ou mais pobre constantemente. A falta de sentido de seu trabalho se reflete em sua existência, fragmentada e à deriva.

É curioso ver Nova York desse prisma não-convencional, sai o glamour moderno para entrar a crise e uma espécie de desespero insinuante, que assoma a cada página e a cada dia que passa.