É quase trágico quando um livro é hilário de uma maneira triste, quando não importa o quão histérica as situações se moldem, elas têm, no fundo, algo a mais para contar – um subtexto poderoso que funciona como crítica e autorreflexão. Hanif Kureishi tem esse estilo em demasia em O Buda do subúrbio, obra de 1990. Não é de se admirar que esse primeiro romance carregue tantas dessas questões, juntando também um cenário setentista onde o rock pulsava na veia dos jovens e a capital londrina era uma porta de entrada para os prazeres ilícitos.

Karim Amir é o narrador e filho de um imigrante indiano chamado Haroon – que mudou-se para Londres para cursar direito, mas seus excessos com bebida e festas o fizeram casar-se cedo com a britânica Margaret e ir viver no subúrbio de Chislehurst, no condado de Kent – e vive uma fase de descobertas na vida junto a seu pai. Haroon está em uma crise de meia idade em que necessita encontrar paz interior, ele acaba seduzido por Eva, que o convence a espalhar a espiritualidade pelos subúrbios – aproveitando a onda paz e amor da época – e para burgueses entediados como um excepcional guru. Karim embarca nas aventuras do pai e passa a chamá-lo de Deus. Eva é mãe de Charlie, um lindo rapaz que desperta sentimento e tesão em nosso narrador-personagem.

Tendo que viver em uma época de turbulência política, cercado pelo preconceito – não apenas na questão racial, mas também sexual -, Karim é uma verdadeira bomba relógio numa cidade muito pequena. Ele precisa se libertar através da música e do sexo, e suas reflexões sobre a vida mostram um retrato amargo em plenos anos 1970 e ao mesmo tempo com doses de esperança e momentos melancólicos camuflados com seu humor único. É impossível não rir das passagens em que ele cita a maneira de seu pai se vestir – “Com certeza era exótico, provavelmente único homem do sul da Inglaterra (fora George Harrison, possivelmente) a usar um colete vermelho e dourado e pijamas indianos”. Essas pequenas passagens mostram um preconceito intrínseco dentro do personagem, que mudará durante sua ida para Londres, onde, possivelmente encontrará sua vocação e salvação. A busca do “eu interior” de Haroon é uma das muitas ambiguidades de O Buda do subúrbio, afinal como é viável alguém que chegou em elevação espiritual se zangar com situações supérfulas e até, vejam que irônico, sentir ciúme da mulher que abandonou.

É possível ser preconceituoso mesmo sendo vítima de preconceito. O amadurecimento de Karim ocorrerá aos poucos, como um caminho a ser percorrido (sim, com essa clareza) entre Chislehurst e Londres. Ele conhecerá um dos amores da sua vida – incluindo um triângulo amoroso – e começará a questionar as suas crenças e seu momento na história. Afinal, a visão revolucionária da época seria mesmo concretizada ou todos viveriam num transe até acordarem? Karim levanta questões sem questionar a si mesmo ou dirigir-se ao leitor, dessa forma conquista com sua sinceridade voraz – distanciando-se da sua psique vezes contraditória e entrando em um surto de consciência inacreditáveis – e seu aprendizado com os mais diversos personagens – Changez, uma pessoa repugnante que beira a um autismo funcional e  noivo prometido da britânica e muçulmana Jamila, uma mulher liberal (em quase todos os sentidos); e Pike, diretor de um grupo de teatro, são os maiores destaques.

Por ser vir do cinema para a literatura, Kureishi trabalha muito com detalhes visuais no livro, descreve roupas e o físico dos personagens com muita desenvoltura. Aliado a um poder descritivo de sensações, principalmente nas cenas mais eróticas, a precisão do escritor é incrível e envolvente, mesmo que muitas vezes pareça alguns capítulos são, essencialmente, um episódio de uma série com começo, meio e fim fechados neles.

A crítica da cultura de massa é tão forte e tão igualitária quanto a cultura pop para Karim (ou seria Hanif?), há um desprezo tão forte e rancoroso (e uma admiração suicida), quase anárquico – como a música punk que ascende nos porões londrinos – para as duas no decorrer da história. As quase inexistentes diferenças entre ser um ator, um político ou um deus. O Buda do subúrbio é por todas as suas linhas um livro cínico e taciturno, não é uma leitura digerível quando chega ao ponto máximo de rirmos de situações condenáveis.