Comprei O motivo junto com O ventre da baleia. Tenho essa mania de ler vários livros do mesmo autor seguidos, e visto que ele estava tão barato, resolvi amealhá-lo logo de uma vez. Fiquei curioso também porque Rodrigo Fresán disse que Javier Cercas estava se transformando num Paul Auster espanhol, o que, devido a ambos os nomes de peso, Auster e Fresán, devia valer alguma coisa. Enfim, razões de escolha à parte, vamos à resenha do livro.

O livro é bem curtinho e narra como Álvaro, um advogado de meio período e aspirante a romancista, procura o motivo no qual se inspirar para escrever seu livro. Ele vive uma vida banal em um condomínio, em torno do qual gira toda a sua sociabilidade, que se restringe à porteira do prédio e alguns de seus moradores, de modo especial o Sr. Montero e o casal Casares.

Por ocasião da busca de sua inspiração, Álvaro rompe sua insularidade existencial e passa a confraternizar com seus vizinhos, buscando nada mais que encontrar neles matéria-prima da qual sua obra irá se nutrir. O utilitarismo interesseiro com que ele trata tudo o que o rodeia, junto ao caráter abelhudo que assume, nos levam quase a odiá-lo.

Levar a cabo seu intento, no entanto, faz com que ele seja obrigado a participar das vidas de seus vizinhos/personagens, de modo que, num jogo metalinguístico muito interessante, o autor seja consequentemente um personagem da história, embora a história que ele escreve esteja sendo contada em terceira pessoa.

Ele se envolve em um affair com a porteira (resolvido com uma grosseria aviltante), com a situação financeira e o trabalho do casal Casares (cujas conversas ele ouve por um curioso arranjo de canos e posições dos andares do prédio) e joga partidas de xadrez com o velho Sr. Monteiro, cujo apartamento, reza a lenda, guarda um cofre recheado de dinheiro. Está desenhado aí o esqueleto a partir do qual a cadeia de eventos deve se desenvolver.

A história dentro da história, embora não seja um recurso novo, é explorada de modo interessante, pois põe em relevo o diálogo entre a realidade e a ficção, mostrando como as influências nesse sentido são tantas e tão intensas que desafiam nossa própria capacidade de rastreá-las e trazê-las à lume.

Mais do que isso, no entanto, o que chama a atenção é que ao construir a história, Álvaro não a absorve mecanicamente, como se quisesse que sua literatura fosse a reprodução cabal da realidade. O que ele faz é encontrar as linhas gerais de um fragmento desse mundo para reestruturá-lo segundo sua própria subjetividade, afinal, a literatura está longe de ser a cópia da realidade, já que funciona segundo uma dinâmica própria.

Se James Joyce dissera que o artista é um pequeno Deus, então o dilema de Álvaro é deveras pitoresco, pois mais do que criar uma realidade, ele transita entre duas, e se torna vítima de uma ardilosa situação que espraia em ambas. Levando em conta a frase de Joyce, Álvaro se tornara vítima de um ardil de ironia prometeica, pois ele próprio estava emaranhado de forma essencial na trama, vivenciando um imbróglio moral curiosíssimo.

A única razão pelo qual O motivo não se tornou titânico, a meu ver, é porque é muito didático. Cercas tinha em suas mãos o esqueleto de uma história simples, mas bem amarrada, com uma trama forte e personagens prontos para serem desenvolvidos (e juntados a outros mais), porém, contentou-se em deixá-la ao nível básico, básico demais. A relação entre fato e ficção foi colocada em termos simples, e conduz a uma leitura restritiva nesse sentido. O motivo não nasceu para ser um tratado desse profícuo e conflituoso diálogo, mas limitou-se em sua abordagem.

Apesar dessas ressalvas que arrolei, acho o livro de Javier Cercas bastante bom e com questões muito interessantes. Boas o suficiente para me fazer querer ler mais obras dele, de modo que já encomendei Soldados de Salamina e Velocidade da luz.