Aqui em São Paulo é comum encontrarmos crachás e guarda-chuvas sendo usados como guarda-lugares das mesas em praças de alimentação de shoppings e restaurantes, para que as pessoas consigam garantir um lugar para comer sem ter que ficar procurando e esperando com uma bandeja de almoço nas mãos. Provavelmente, essa prática se repete em outras cidades e situações, como quando um amigo guarda lugar para o outro em uma fila ou na cadeira ao lado em uma sala de cinema. Esse hábito nada correto, mas muito usado pelo brasileiro, pode até esbarrar nas leis, por exemplo, quando dois carros se chocam e os motoristas decidem atribuir a culpa àquele que tem seguro, ou ainda quando encontramos formas de não pagar um imposto ou conseguir algum benefício.

Os exemplos são muitos e provavelmente você já se deparou com alguma situação em que o nosso lado “malandro” ou o “jeitinho brasileiro” falou mais alto. Para Sérgio Buarque de Holanda, esse hábito do nosso povo é o que o torna um homem cordial, termo presente em um de seus ensaios. A palavra cordial, no entanto, nos leva para um lado mais polido, que não é o sentido que o autor quis atribuir, e ele mesmo se resguarda disso em seu texto. É fato que o brasileiro é conhecido por ser hospitaleiro, alegre e festeiro, mas não seriam tão conhecidos pela educação ou polidez, como os japoneses e outros povos. A palavra cordial, nesse caso, remete ao latim cordis, que significa coração. O homem cordial é, assim, alguém que age com o coração ao invés da razão.

Para o autor, o brasileiro carrega uma herança já de Portugal e, mais do que isso, indígena e africana, que o torna mais voltado à família patriarcal e amizades. Além disso, temos um cenário de poder instaurado que não permite diálogo entre quem governa e quem é governado. Para o homem cordial, a esfera pública é uma extensão da esfera privada, quando elas, na verdade, deveriam ser opostas. Isso gera um problema de entendimento de leis em prol de interesses próprios. Além disso, segundo o autor, “a própria gestão política apresenta-se como um assunto de seu interesse particular”, e isso explica o hábito, até hoje visto, de políticos levarem parentes e amigos à cargos públicos. O problema está, como o autor indica, no crescimento das cidades e na não-distinção entre o que é público e privado:

“No Brasil, onde imperou, desde tempos remotos, o tipo primitivo da família patriarcal, o desenvolvimento da urbanização – que não resulta unicamente do crescimento das cidades, mas também do crescimento dos meios de comunicação, atraindo vastas áreas rurais para a esfera de influências das cidades – ia acarretar um desequilíbrio social, cujos efeitos permanecem vivos ainda hoje”.

Com o crescimento das cidades, o homem se vê obrigado a ser individualista. A cordialidade é também, de certa forma, uma negação a isso, pois ela aproxima as pessoas e cria uma esfera nova de regras, como num círculo familiar. No fim da análise, Sérgio Buarque de Holanda mostra como até mesmo a nossa religião é “cordial”, uma vez que não é rígida nas formas da oração e chega a aproximar os santos, de um jeito que poderia ser julgado até mesmo como desrespeitoso em outros países, como é o caso da Santa Teresinha (Teresa de Lisineux).

O homem cordial foi publicado pela primeira vez em 1936, no livro “Raízes do Brasil”, primeiro de Sérgio Buarque de Holanda, em uma época em que o brasileiro começava verdadeiramente sua busca por uma identidade (a partir da semana de arte de 22). A Penguin-Companhia apresenta o texto, na íntegra, em um livro que leva o mesmo nome. Junto desse ensaio, o leitor encontrará outras das principais obras do autor, como “O poder pessoal”, que é uma análise do império brasileiro no século XIX, através de relações de poder do imperador que, aos poucos, se perdem; “Experiência e Fantasia”, que é uma crítica sobre a falta de fantasia nos registros quinhentistas dos portugueses sobre o Brasil, além de “Botica da natureza” e “Poesia e crítica”.