Curitiba é uma cidade estranha. Ao mesmo tempo em que se percebe uma mudança do padrão comportamental de seus habitantes com relação a eventos culturais (como Cristiano Castilho tem ressaltado ultimamente em seus textos), ainda se pode perceber, aqui e ali, resquícios do comportamento default que se esperaria. Algumas coisas muito legais, especialmente as relativas à literatura, quase não têm público presente. Não se sabe se os curitibanos estão dando um recado (“Já parou pra pensar que talvez o evento esteja sendo superestimado?”), se a divulgação não foi boa, se o frio e a chuva fizeram o povo não sair de casa ou se há uma variedade tão grande de opções culturais simultâneas que algumas inevitavelmente serão esquecidas.

A ausência de público prestigiando Carola Saavedra e José Eduardo Agualusa debatendo a língua portuguesa na literatura, em uma noite promovida pelo Sesc há alguns meses, pode ter tido mais do que uma razão. A última foi a principal, acho. Eu mesmo estava: (1) com muita vontade de ver uma reunião de quadrinistas (incluindo um argentino) que lançavam a revista Fierro Brasil #2 na Itiban Comics Shop; e (2) ansioso para ver o lançamento de uma publicação da Fundação Cultural de Curitiba em que havia um conto meu. A vida é feita de escolhas. Não me arrependi da que fiz.

Carola Saavedra encantou-me, mais ou menos como já fazia com suas colunas no Jornal Rascunho. Falou sobre vendas no exterior; sobre como as editoras alemãs querem, hoje, ter ao menos um autor brasileiro em seus catálogos; sobre o olhar brasileiro a respeito de questões universais; sobre Bernardo Carvalho; sobre exotismo literário; sobre como “o autor escreve aquilo que pode escrever, não aquilo que quer escrever”; sobre como não trabalha com estilo (que se diferencia de acordo com o que ela quer dizer), mas com personagens. Pouco antes de permitirem perguntas da pequena plateia, ela falou um pouco sobre sua experiência na Alemanha, onde concluiu um mestrado em comunicação, e sobre o seu medo de esquecer o português. “Se eu esquecesse o português, eu enlouqueceria”, disse – uma frase que achei bonita demais.

Eu não sei desenhar pessoas. E não me preocupei em desenhar a cadeira em que ela estava sentada.
Eu não sei desenhar pessoas. E não me preocupei em desenhar a cadeira em que ela estava sentada.

Anotei tudo que pude. Também desenhei, como forma de facilitar a lembrança da experiência. Minha única pergunta (uma espécie de declaração de que a leria tão logo pusesse a mão em um de seus livros, algo que reiterei ao pedir um autógrafo dela em meu corrupio) foi se os livros dela seriam mesmo uma trilogia – e, portanto, deveriam ser lidos na ordem de publicação. Ela respondeu que era uma leitura possível, sim, mas que não havia uma ordem determinada.

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toda-terca

 

Estudei um pouco, não muito, o problema é que não consigo me concentrar direito. Começo a ler cheia de ânimo, leio às vezes uma página inteira, duas páginas, mas, quando vou ver, nem sei do que se trata, não sei mais o que li. Sabe?, eu leio mas não leio, é como se as palavras não entrassem na minha cabeça, como se eu estivesse lendo em japonês, sabe aqueles desenhinhos?

O trecho se encontra numa das primeiras páginas de Toda terça. Resolvi ao menos começar a ler o livro antes de realmente pegá-lo emprestado, como havia feito umas duas vezes, devolvendo sem tê-lo lido. Identifiquei-me com o excerto, só que ao contrário: não consegui parar de ler. Estava fazendo uma leitura por amostragem e esqueci: (1) que estava morrendo de fome e tinha que correr para o almoço (acho que um dos melhores elogios que se pode fazer a algum artista é dizer que, quando da apreciação de sua arte, você esqueceu que tinha um corpo que precisa de constante manutenção); (2) que estava tentando me decidir se levava Vila-Matas ou Saavedra comigo (eu podia pegar dois livros e já tinha escolhido um): a decisão passou a ser entre Vila-Matas e McEwan e este, que já estava “garantido”, levou a pior.

Ah, Otávio era belo e inatingível.
– No que você está pensando Laura?
– Em nada.

Toda terça é dia de Laura se consultar com Otávio, seu terapeuta. Ela conta-lhe a respeito de seus sonhos, seus problemas conjugais com o amante, sua frequência sexual, seus atos cotidianos. Ela quer respostas, sem ter coragem de fazer as perguntas – ou de dar dicas de quais essas seriam. Ela pensa seduzi-lo e se sente rejeitada simplesmente por ele não ter o dom da telepatia. Nas últimas quatro frases, que dizem muito pouco a respeito do enredo e da estrutura do romance, forneci dados muito mais diretamente do que ocorre em qualquer momento da narrativa. Saavedra escreve de um jeito simples, mas muito propenso a ambiguidades: demora, por exemplo, para que o leitor tenha um dado mais concreto a respeito do tipo de relação entre Otávio e Laura. Instigante é pouco, mas define o modo da autora de escrever.

Duas horas depois a eternidade já havia terminado.

Paralelamente, Javier conta sua história – em primeira pessoa, assim como nos capítulos centrados em Laura. Passamos a conhecer seu relacionamento com Ulrike e com os amigos dela (em especial, com relação a Camilla, uma moça estranha cuja descrição me lembrou vagamente Saavedra) e com o apartamento dela (onde fica sozinho às terças-feiras) e seu pensamento sobre a universidade, sobre sua condição de estrangeiro, sobre sua solidão.

Camilla. Eu sempre tivera certa dificuldade com Camilla, como se ela encerrasse ao mesmo tempo uma exigência e uma impossibilidade. A verdade é que Camilla era uma mulher estranha, o que a tornava ainda mais inadequada, essa definição, “estranha”, uma palavra que não define nada, que pode significar qualquer coisa igualmente vaga e inexata, como “interessante” ou “simpática” ou “agradável”, um desses adjetivos-curinga que a gente usa quando não sabe o que dizer.

A alternância de capítulos na primeira parte não parece obedecer a nenhuma equação matemática: 1-2-1-3-1-2-1-2-1-2 – sendo os “1” os capítulos de Laura, e os “2” e “3” a quantidade dos reservados para Javier. O leitor, acostumado a narrativas paralelas que em alguma hora se cruzam, começa a prestar mais atenção quando Laura diz o nome do sujeito que ela teria encontrado num cinema (seria ele real ou apenas uma forma de atrair a atenção de Otávio?) e quando Javier começa a pensar mais intensamente em voltar para a América do Sul.

– E quem era esse alguém?

Em um final que surpreende, provoca e incomoda, o leitor termina um livro que o instiga a recomeçá-lo em seguida. Saavedra explica algumas coisas sem explicitá-las e mostra que em momento algum trapaceou com quem a lê – e que, se ele tinha achado fácil perceber a presença de Laura toda terça perante um terapeuta (e que aquilo não era apenas uma conversa informal com um amigo conselheiro e atraente), era só uma questão de atenção para que se percebesse todo o resto. No último capítulo, que compõe a segunda parte, a autora nos surpreende com uma voz diferente, em um exercício muito parecido com o que levou Jennifer Egan a levar o Pulitzer por seu A visita cruel do tempo.

Eram sempre assim, esses meus encontros com Otávio, eu já saída de cada pensando em tudo aquilo que eu queria falar, naquilo que eu tinha que dizer de qualquer jeito, às vezes até anotava num pedaço de papel, e, ao chegar no prédio, já na portaria, a expectativa, talvez um certo nervosismo, como se cada vez fosse a primeira vez, e, quando ele abria a porta, um entusiasmo inexplicável e a folha de papel fica esquecida na bolsa. Naquele dia, a mesma coisa, aquele pensamento o dia inteiro, eu imaginando a melhor forma de contar para Otávio. É, porque a questão nunca é o que a gente conta, mas a forma de contar, às vezes, qualquer deslize, e pronto, botamos tudo a perder.

Interessante que eu me lembre de um romance cuja principal inspiração, segundo sua autora, seja a obra mais famosa de Marcel Proust. Há algo muito proustiano na narrativa criada por Laura, anotada “num pedaço de papel”, para Otávio. Mas só falo mais disso com quem já tiver lido o livro.

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Flores-Azuis-por-Carola-Saavedra

O modo covarde de iniciar um texto sobre Flores azuis é uma forma enviesada de tirar parte do mérito da escrita de Carola Saavedra. Vamos lá: eu estava muito, muito gripado – isso sempre me deixa um pouco propenso à fragilidade emocional; além disso, na minha mente ainda havia resquícios do Dia do Correio Aéreo Nacional (12 de junho, a saber); por fim, eu estava sentado e com uma maldita xícara de café na mão!

Olhou para o envelope azul sobre a mesa, o envelope e a xícara, lado a lado, como se um não fosse possível sem o outro, como numa composição.

Três páginas, 591 palavras e 2.718 caracteres depois de começar a leitura… eu estava chorando sem controle (pensei em escrever eufemismos como “estava profundamente emocionado”, mas acho que “chorando sem controle” compensa eu ter dado outros motivos desencadeadores da reação – dane-se o orgulho próprio). Coloquei o trecho no meu Tumblr (razão pela qual eu sei o número de caracteres) e, se você se interessar em lê-lo, vai perceber porque citei que estava tomando uma xícara de café. Pareceu-me que estava lendo algo escrito para mim e, ao mesmo tempo, que aquilo poderia ser uma carta minha, que tivesse voltado por mudança de endereço do destinatário.

Ao acabar de ler a carta, guardou-a novamente no envelope e o deixou em cima da mesa, ficou por algum tempo em silêncio, sentindo-se estranho, incomodado.

Não é só Marcos, o protagonista, que se sente assim. A carta foi assinada apenas com A., não tem remetente no envelope azul claro e é destinada a outra pessoa – como o endereço estava correto, ele supõe que o destinatário era um antigo morador. São nove cartas no total, que se alternam com os capítulos centrados em Marcos, um homem ambíguo: ele é egoísta (ou seria apenas um solitário?), meio machista (ou suas experiências com mulheres seriam mesmo todas muito parecidas entre si?) e um pouco voyeur (mas quem não seria, com cartas sem remetente que chegam todo dia?).

Então, por que tudo isso?, você poderia pensar. Essa exposição do que não fiz, esse inventário de vinganças abortadas. Uma forma sutil de castigo? Uma declaração de amor? Eu não sei, talvez apenas fraqueza, para que você sorria ou sofra, ou talvez uma forma de te querer, de te alcançar, para estabelecer entre nós um elo, um elo impossível, que eu só estabeleço porque estou aqui, porque há essa distância entre o que escrevo e o que você lê, porque há dias não tomo banho, não penteio o cabelo, não saio de casa.

Parecem, inicialmente, apenas cartas de amor. Aos poucos, contudo, obtemos maiores detalhes sobre o relacionamento da missivista e do destinatário hipotético e… resumo a situação com uma frase clichê: a tensão vai aumentando.

Te respondo, desta vez sem rodeios, sem repetições, da forma simples e sem grandes escândalos como acontecem as coisas mais espantosas, as coisas importantes: escrevo para que você me leia. Simples assim. Para que você me leia e volte, para que você me leia e pense que há algo surpreendentemente belo em mim, algo que você não viu, algo que passou por nós despercebido. Então, para ser ainda mais clara, é possível?: para que você me leia e me ame. Por que não? Outra pessoa, ao ler estas cartas, talvez me amasse, você não acha?

Creio que Marcos, aos poucos, vá se apaixonando por A. Isso se reflete não apenas em sua busca incessante pela autora das cartas – numa lanchonete próxima à porta da agência dos correios que está nos carimbos que estampam os envelopes azuis – e pela reconstrução das imagens descritas nas cartas – quando vai atrás de brechós e de máquinas de moer café. Também é perceptível uma correspondência de linguagem: algumas frases constantemente repetidas nas cartas e até a estruturação do pensamento de A. contaminam os capítulos protagonizados por Marcos. “Como era possível, ele pensava.”

E eu me segurava ao vaso de flores azuis como se ele também se segurasse a alguém, mas só estávamos nós.

Por fim, falo do título. O trecho acima está na página 135 – prometo não revelar nada comprometedor – no meio de uma das cenas de maior tensão do romance, descrita em uma das cartas. Uma parte de mim ficou satisfeita por ver, afinal, o título reproduzido e supostamente explicado. Outra parte, a que costuma se aprofundar em suas obsessões, interpretou o título como um símbolo mais perverso e doloroso para a mesma cena – e escondido entre as constantes repetições que há nas cartas. Revelar a interpretação seria falar demais sobre o enredo (se algum curioso perguntar nos comentários, respondo), mas dou as coordenadas para quem estiver com o livro em mãos: para “azuis”, releia o trecho em que A. revela a única coisa de que se lembra das aulas de biologia (p. 58: “Na aula de biologia aprendemos […]”); para “flores”, releia a frase que se encontra entre as páginas 135 e 136 e, também, a última da página 150. As flores azuis não estão na cena: elas são a cena – ou as marcas invisíveis (em, no mínimo, dois sentidos) desta. O título é perfeitamente unido a simbólicas cores de aquarela, o que torna a capa deste livro memorável.

E, se fosse possível, um texto que não só explicasse as palavras, mas também guiasse a tua leitura. Ali, onde havia palavras simples, banais, leia algo extremamente belo, algo inesperado, para que você volte, para que você me ame e volte. Ou, mesmo que você não me ame, que essa leitura seja também uma forma de amor. E fique essa comparação, essa esperança.

Flores azuis não são vistas, mas sentidas. As cartas em envelopes azuis não chegam aos olhos do destinatário, mas mudam drasticamente a percepção de um homem. O romance de Carola Saavedra parece simples, mas arrebenta o coração do leitor.

E, durante a leitura, pela primeira vez naqueles últimos dias, havia algo que era seu.