Este ano Blade Runner faz 30 anos e, talvez motivado pelo fato de não ter gostado do filme, começou a crescer um comichão para ler Do androids dream of eletric sheep?, livo que inspirou a película. O título, que muito apela para minhas ilações internas sobre a natureza da inteligência/consciência artificial, também ajudou a me seduzir. Afinal, quem nunca se questionou sobre o que pensam os semáforos à noite, enquanto piscam a luz amarela?

Todos os leitores que, como eu, travaram algum contato com o filme Blade Runner criam a expectativa de encontrar no livro a mesma atmosfera. Mas as semelhanças entre as duas obras não vão muito além do fato de o protagonista, Rick Deckard, vivido por Harrison Ford no filme, ser um caçador de recompensas cujas presas são androides.

O livro se passa em um futuro próximo, quando o planeta Terra foi devastado por uma terrível guerra nuclear. A chuva radioativa é um fenômeno tão constante a ponto ser incorporado à previsão do tempo. A destruição causada pela guerra foi gigantesca e praticamente exterminou todos os animais do planeta. A ponto da presença de uma aranha, em determinada passagem do livro, ser recebida com regozijo pelos personagens. E foi desta Terra destruída que a quase totalidade da raça humana fugiu covardemente, para se alojar em Marte, na companhia de androides escravos, réplicas quase perfeitas dos humanos. Exatamente em razão da escravidão a que são submetidos, alguns dos robôs buscam fugir para a Terra, ilegalmente, onde poucos humanos insistentes permaneceram, vítimas de radiação que lhes encurta a vida e geram lesões cerebrais.

São esses androides fujões os alvos do protagonista, cujas angústias passam pela vontade de ter um animal de estimação, item de status no mundo destruído, e necessidade diária de destruir criações tão semelhantes aos humanos e, na maioria dos casos, mais inteligentes e belas.

E se você achou a minha descrição cheia de elementos, não faz ideia de como Philip K. Dick carrega seu romance com criações geniais. Já no prefácio, Roger Zelazny afirma que o autor é daqueles escritores tão criativos que se dá ao luxo de abandonar como acessórios elementos que, para a maioria dos autores, seriam motivadores de livros inteiros. Assim é, por exemplo, com o “órgão de humor”, um aparelho capaz de provocar nos usuários qualquer sentimento desejado. Ou o contrabando de obras de ficção científica para Marte, em razão do qual os androides disparam, por foguetes não tripulados, livros escritos na passada década de 60.

Todavia, mesmo com o excesso quase barroco de elementos a serem absorvidos pelo leitor, cada detalhe do livro é bem amarrado para servir a seu objetivo. Pois, nem todas as mais inventivas ideias seriam capazes de cativar se não possuíssem como tema central uma investigação (pretensiosa, por que não?) de qual a essência da natureza humana. E, seja ela qual realmente for, Philip K. Dick dá um (bom) palpite.

P.S.: Não encontrei versão do livro em português disponível para vender atualmente, a edição da Rocco (que chegou ao Brasil com o título O Caçador de Androides) encontra-se esgotada. Uma distração das editoras, que deveriam ter aproveitado o aniversário do filme para reavivar o livro. Como se diz no Twitter, #ficaadica

P.P.S.: Depois descobri que o nome do filme, Blade Runner, vem de outro livro, de um autor chamado Alan E. Nourse.

Sobre o autor: Leitor compulsivo desde a era antediluviana, Carlos Goettenauer atualmente está na vanguarda da leitura eletrônica, mas permanece na batalha de ler todos os livros que se reproduzem na estante. Quando não está fazendo uma das coisas importantes da vida, como ler, dedica-se a escrever crônicas no blog Estado Crônico e atormentar seus seguidores no twitter (@cadugoette).