Até o dia 24, teremos uma “conversa por escrito” comentando os contos da revista Granta, que reúne os 20 Melhores jovens escritores brasileiros, e cada conversa abordará dois contos por vez. Confira os posts anteriores:

Granta: Animais e Aquele vento na praça

Granta: Antes da queda e O que você está fazendo aqui

Granta: Tólia e Apneia

VALDIR PERES, JUANITO E POLOSKEI

Antonio Prata

Antonio Prata nasceu em 1977, em São Paulo, e tem nove livros publicados, entre eles Douglas (Azougue Editorial, 2001), As pernas da tia Corália (Objetiva, 2003), Adulterado (Moderna, 2009) e, mais recentemente, Meio intelectual, meio de esquerda (Editora 34, 2010), que reúne crônicas publicadas em jornais e revistas. Mantém uma coluna às quartas no caderno “Cotidiano” do jornal Folha de S. Paulo e escreve para televisão.

Tuca: Se mesmo a introdução da Granta fugiu da raia quanto a definir se o texto de Antonio Prata é um conto ou uma crônica, eu, que não me interesso muito a respeito das delimitações de gênero (e das eventuais discussões sobre o grau de ficcionalidade da narrativa), não o farei. Crônica ou conto, o que interessa é se é bem escrito ou não, se cativa ou não, se é literatura ou apenas um conjunto de reminiscências que buscam alcançar alguns leitores pela nostalgia.

Devo confessar que eu tinha certa preguiça do nome do autor. Não porque tivesse lido algo dele, pois não o tinha feito ainda. A principal razão, creio, era o fator “unanimidade”: pelo jeito todo mundo gosta do que ele escreve. Nunca li Meio intelectual, meio de esquerda, mas era enorme a quantidade de pessoas cujas opiniões eu desconsidero absolutamente que o recomendava. Eu cheguei a ler alguns trechos da crônica que dá título à coletânea, enquanto tais pessoas davam risadas que se supunham irônicas e pontuavam a leitura com “é assim mesmo que acontece!”, ainda que supostamente percebessem a ironia do autor: não era ruim. As pessoas que o recomendavam (que se consideravam “meio intelectuais” e inteligentes, ainda que não o sendo, a ponto de zombarem dos que se achavam “meio intelectuais” etc.) eram, quase sempre, do tipo que me fariam, quase que invariavelmente, anotar a sugestão num papel para, em seguida, jogar numa lixeira. O nome do autor ficou, portanto, meio que associado a “wannabe intelectualoide metido a besta”.

Adianto apenas que mudei de opinião ao ler esse texto. Mas antes quero saber um pouco da tua relação com o autor. Já tinha lido algo dele?

Taize: Não tinha lido algo dele e pouco havia ouvido falar. Ok, ele não era um total desconhecido, mas resumindo: contato zero com qualquer outra coisa que ele tivesse escrito. Não me admira que ele tenha sido muito bem elogiado por outros e criado essa preguiça-alinhada-a-altas-expectativas-que-podem-destruir-uma-leitura, já que boa parte dos nomes dessa Granta já são bem elogiados (ou elogiados mais do que esculhambados). Então, assim como todos os outros autores que ainda não havia lido – que contabilizam pelo menos 10 desses 20 – li esperando nada além de algo bom. Afinal, a revista vende os “melhores”, mesmo não sendo os “melhores”, mas enfim, devem ser bons.

“Valdir Peres, Juanito e Poloskei” foi o primeiro conto (vamos chamar de conto que é mais fácil) que me fez pensar “opa, realmente coisa boa!” – sim, mesmo com Michel Laub lá na comissão de frente. A primeira coisa que gostei foi a nostalgia que o texto traz: infância, anos 80 (embora a minha infância tenha sido vivida nos anos 90, mas digamos que esses anos guardam um gostinho dos anteriores), grupo de amigos inocentes e pouco ligando para coisas além de suas brincadeiras. E daí chega o Rodrigo, esse sacana, com um Jeep de controle remoto e acaba com toda a harmonia infantil, instaurando a inveja. Mostrando na cara dos garotos que o pai tem dinheiro para presenteá-lo com um brinquedo caro desses. Dando início é uma competição ainda ingênua, mas que é uma prévia do quanto os bens materiais vão definir amizades, relações e reputações. Juro que consegui lembrar de como era ver meus primos metidos a ricos aparecendo  na rua com um Lego robotizado enquanto eu tinha só uma casinha de veraneio rosa e branca – baita inveja.

Tuca: Bah, minha preguiça com o autor foi prévia à balbúrdia toda da Granta (“sim, eles são os melhores”; “panelinha!”; “leiam o que os leitores adoram”; “quem se importa se um caminhão destruir a Mercearia São Pedro”). Sim, eles podiam ter evitado um monte de reclamações de gente que nem tinha lido se tivesse colocado o famigerado “dos”: 20 dos melhores jovens escritores brasileiros. Em geral, gostei da coletânea. Creio ter ficado tão feliz pela ausência de uma autora em especial (sou elegante, não digo nomes), cujo nome tinha como certo, que não me importei com a ausência de outros escritores pelos quais torcia e pela presença de tantos nomes que não conhecia. Li diversas críticas destruindo contos que adorei e elogiando textos que detestei (além de outras com as quais concordei), o que me deixa cada vez mais seguro quanto a minhas opiniões pessoais.

Há algumas coisas que se supõe doces e bonitas apenas porque o imaginário popular diz isso. Entre elas, a nostalgia da infância. Taí algo que julgo não ter, além de ser algo de que também, para variar, tenho preguiça. No entanto, o conto de Antonio Prata é eficaz nesse sentido: eu não preciso ter uma vivência pessoal equivalente à dos personagens ou ter um instinto saudosista para apreciá-lo. A narrativa não apresenta algo muito além de uma infância comum, convencional, ordinária e muito parecida com a de diversas pessoas na época, mas a escolha de, por meio das crianças, mostrar toda uma série de mudanças da nação, foi certeira, creio. O tom é adequado, as frases são simples (ainda que não se deva com isso dizer que não foram bem escritas: há um fluidez nelas atípica em autores que não cuidam da linguagem) e algumas delas chegam a se tornar icônicas durante a leitura, devido à repetição, à ingenuidade e à comicidade delas, como as que comparavam os zumbidos dos brinquedos eletrônicos ao barulho de abelhas se tivessem o tamanho de gatos.

Taize: Eu juro que não dei tanta atenção aos comentários sobre escritores que ainda não conhecia. Pensei “ok, esse eu conheço, sei que gosto, vamos ver se vou gostar do que colocou aqui na Granta”. Do resto, me concentrei em ver se eram no mínimo bons para merecerem estar nessa seleção. Sou facilmente influenciável quando várias pessoas do meu círculo de contatos começam a elogiar muito um livro ou um autor (foi assim com Bonsai, do Alejandro Zambra, e A culpa é das estrelas, do John Green – só para ter a satisfação de citar um autor pop infantojuvenil dentro dessa conversa super “intelectualóide”!), mas como não ouvi tanto sobre o Prata, não comecei a leitura nem com essa preguiça que tu teve, nem com a expectativa nas alturas, como geralmente acontece.

Pois é, esse negócio da nostalgia infantil pode ser algo bem supervalorizado em alguns momentos, mas para mim é algo que sempre conta bastante. Como lembrou muito da minha infância, tive uma identificação instantânea (mesmo que essa minha infância tenha ocorrido 10 anos depois da que é representada no conto). Mas é aquela coisa: a vivência pessoal acaba influenciando na minha recepção da história, não sei se contigo é assim, mas para mim é como funciona (óbvio, sem deixar de lado a qualidade técnica do texto).

Considero que “escrever de forma simples”, mas ainda assim guardar no texto e nas entrelinhas algo de lírico, de mais profundo, é o mais difícil na escrita. Conseguir passar algo maior com palavras simples. Senti isso nesse conto, o formato dele é tão fácil e tranquilo de assimilar, relaciona tão bem essa “quebra” da paz infantil com o crescimento econômico de uma geração, que acabei elegendo “Valdir Peres, Juanito e Poloskei” um dos meus preferidos da Granta.

Tuca: (Dicas anotadas: Bonsai já li e A culpa é das estrelas já tinham me convencido a ler lá na FLIP.)

Bom, depois de tudo o que você disse, eu só poderia acrescentar coisas bastante pessoais: (1) o texto de Antonio Prata também foi um dos meus preferidos na revista; (2) o cara conquistou mais um leitor para seus livros solo – aliás, um leitor meio chato porque já está perguntando; (3) quando que fica pronto seu romance para os Amores Expressos, hein?

 

O JANTAR

Julián Fuks

Julián Fuks nasceu em novembro de 1981 em São Paulo. Filho de pais argentinos, foi repórter da Folha de S. Paulo e resenhista da revista Cult, além de publicar contos em diversas revistas e na antologia Primos: histórias da herança árabe e judaica (Record, 2010). É autor de Fragmento de Alberto, Ulisses, Carolina e eu (7Letras, 2004), Histórias de literatura e cegueira {Borges, João Cabral e Joyce} (Record, 2007), finalista dos prêmios Portugal Telecom e Jabuti, e Procura do Romance (Record, 2011).

Palazo: Pretendo reler o conto do Fuks, mas por ele ter pais argentinos e morar no Brasil penso que o texto soe um pouco autobiográfico. Além disso, gostei do despertar de sentimentos no encontro com a tia e a figura militar, a dor fica bem aguçada de fato. Bom, na próxima leitura as ideias devem amadurecer.

Anica: É o que li por aí também, que o conto tinha um quê de autobiográfico, mas como não conheço muito da vida do Fuks (haha, nem da obra, é a primeira coisa que leio dele), não posso afirmar qualquer coisa sobre isso, então fiz uma leitura fugindo um tanto desse aspecto. Gostei bastante da abertura do conto, é bem forte e diz muito sobre o que virá a seguir. Achei bacana principalmente porque em conto o escritor não tem tanto tempo para ganhar um leitor como acontece no romance: aqui a conquista tem que ser rápida, e Fuks dá conta disso muito bem já nas primeiras frases.

Dá para ver também que ele faz ótimas escolhas de palavras. Não sei como explicar isso, mas você lê poucos parágrafos e sabe que tem em mãos algo escrito por uma pessoa que “sabe” o que está fazendo, e aí o prazer da leitura não é só da boa história, é estético também. Realmente achei muito bom.

Palazo: O lado estético que você cita é uma preocupação constante de Fuks e que ele expressa em um trecho dessa entrevista ao Terra“O encanto que eu almejo provocar, é o encanto do paradoxo: a linguagem que flui, feita de ritmo, riqueza e sonoridade, e que tenta assimilar o real em sua complexidade, ciente de que o real há de ser sempre inassimilável.”

O cuidado com a forma também passa pela narração, em que a voz do narrador, em terceira pessoa, confunde-se constantemente com os dois personagens principais: Sebastián e a tia. Essa confusão é feita de maneira natural, quase imperceptível, e destaca as dores de ambos despertadas pela intimidade do jantar. Creio que aqui um dos pontos chaves do conto, que inicia com silêncios preenchidos com falsas formalidades e é finalizado com as feridas colocadas na mesa durante a refeição. O ar intimista é exposto pelo antagonismo de opiniões, pelas dores despejadas e pelo passado que vem à tona.

Anica: Você comentou sobre destacar “a dor de ambos despertadas pela intimidade do jantar”, mas não foi isso que eu enxerguei em minha leitura. Na tia há uma espécie de rancor com o novo poder, visto que ele obviamente não a beneficia. E a dor de Sebastián parece mais evidente quando surge a figura do homem fardado, que traz consigo memórias de sofrimentos que sua família passou por conta de homens como ele. Memórias que façam com que agora adulto ele compreenda ações de seu pai que ele não compreendera antes, aquele sentimento de impotência quando se sabe que algo deve ser feito.

Estranho, eu não consegui captar dor por parte da tia. Há uma espécie de rancor que ela sente.

Palazo:  Mas todo rancor não é causado por um ressentimento, mágoa ou dor? No caso de Sebastián é mais evidente, conforme os eventos vão remontando o passado – o encontro com a tia, o jantar, o militar – a dor e angústia vão ficando maiores, mais transparentes. Já com a tia transparece mais a indignação com a perseguição do governo da Cristina Kirchner aos militares. A dor dela não é explícita, ela aparece nos silêncios, na falta de qualquer carinho na fala e nas atitudes iniciais e principalmente quando fala da situação dos filhos e netos: “Andam bem, os que andam”. Nesse momento Sebastián julga que ela fala dos menores, que ainda não tem a capacidade de andar, mas eu vejo a frase carregada de dor que ela guarda, talvez sugerindo dificuldades de familiares e a própria situação retratada na pouca comida no jantar.

Acho curiosa a escolha do Fuks para o despertar das dores durante a refeição. Óbvio que o encontro com a tia e o militar despertam o passado, mas é no jantar em que as dores tornam-se mais claras e todo o peso recai sobre Sebastián, além de fazer a tia despejar em palavras ressentimentos contra o governo.

Anica: Eu acho que não, nem sempre rancor tem a ver com dor, e não é o que eu vi no caso da tia. Não usaria a palavra dor, mas raiva – que apesar de negativas são bem diferentes.

De qualquer modo então na sua visão você acha que a família da tia passa por dificuldades por causa das perseguições sofridas pelo governo atual? Você não acha que considerando o histórico de Sebastián esse reencontro com a tia não seria motivo de dor, mas uma espécie de satisfação por vê-la no lugar em que seu pai esteve em outro período da história da Argentina? Será que a frugalidade do cardápio tem realmente a ver com dificuldades financeiras?

Palazo: Fuks não deixa escapar se há motivos para a situação familiar da tia, o que senti foi que as palavras dela também soavam pesadas, e de certa forma acredito que o jantar confirma a situação. Quanto a Sebastián, não creio que ele tenha qualquer satisfação, nem procura demonstrá-lo, o peso do passado vindo à tona é muito mais forte e impactante.

Mas pensando no jantar, você acredita que há algo maior contigo na sua escassez?

Anica: Para falar bem a verdade não vi na refeição em si algo tão importante assim. Talvez ela ofereça um jantar modesto por não estar confortável com a visita de Sebastián (pelo menos foi o que deu a entender com sua irritação inicial ao falar com o sobrinho), e não por conta de sua condição financeira em específico. Eu acho que o importante no conto não é o jantar como refeição, mas o jantar como evento, o encontro entre esses dois extremos de um momento da história daquele país.

Palazo:  O jantar é de fato o ápice para o encontro.

Reli o conto para captar o modo como Fuks sequestra o leitor, que você comentou no início de nossa conversa. Os instantes que antecedem o encontro, em que Sebastián está em frente a porta de entrada da casa da tia, há uma explosão de sentimentos e é possível presenciar toda a ansiedade do momento. Ali somos transportados para a cena, não há tempo de respirar, já estamos dentro dela acompanhando cada revelação proporcionada pelo jantar. De fato um conto muito bem construído por Fuks.

Anica: O engraçado é que em um primeiríssimo momento pensei que era o encontro entre um cara apaixonado com seu grande amor, achei até graça quando segui em frente e vi que não tinha nada a ver com isso. De fato, um conto muito bom, que realmente chama a atenção.