Após Montaigne e Rousseau (sobre os quais escrevi nas colunas passadas), essa coluna pretende deter-se um pouco sobre algumas das colocações de Umberto Eco quando esse fala sobre a cultura de massa, não necessariamente que esse texto se volte à cultura de massa como um objeto, mas sobre o curioso título que Eco resolveu dar ao seu livro que discute a cultura de massa: Apocalípticos e integrados.

Nas duas últimas colunas falei sobre como tanto Montaigne quanto Rousseau transparecem em seus textos algumas de suas convicções pessoais a respeito da construção de um contrato social – o último – e uma atitude e um conjunto de comportamento morais – no primeiro. Ambos acreditam que da aplicação de suas convicções – em uma asserção ampla e não mecânica e episódica – pode advir algo de bom. Rousseau certamente depositou grandes esperanças na participação coletiva na organização do Estado e do contrato social, e Montaigne muito provavelmente acreditava que tomar a virtude como uma volúpia era um ótimo caminho para nos tornarmos melhor em algum sentido, certamente inspirado nos ensinamentos do próprio Sêneca.

Mas justamente por esperar algo de bom – esperar no sentido ativo e não passivo -, ambos são considerados, não por todos mas por vários, como ingênuos ou demasiadamente otimistas em relação ao porvir.

Se a história da humanidade os tem provado errados em diversos sentidos, ela não solapou seus ensinamentos completamente. As opiniões que os consideram ingênuos ou otimistas demais não conseguem enxergar plausibilidade em olhar para o presente e para o porvir sem enxergar neles trevas indevassáveis. Esse tipo de opinião é o que caracteriza o que Eco chama de “apocalípticos”. Muito desse sentimento apocalíptico, segundo o autor, “consola o leitor porque lhe permite entrever, sob o derrocar da catástrofe, a existência de uma comunidade de ‘super-homens’, capazes de se elevarem, nem que seja apenas através da recusa, acima da banalidade média.” (p. 9) Ou seja, por sob os augúrios apocalípticos pode jazer um confortável “integrado”.

O “integrado” é aquele que partilha de uma atitude e uma visão de integração em relação ao mundo e à realidade que enxerga. Eco, a esse respeito, diz que “(…) a integração é a realidade concreta dos que não dissentem.” (p. 9). Ou seja, os “integrados” muitas vezes nos passam a ideia que nos passa o Dr. Pangloss de Cândido, a de que vivemos no “melhor dos mundos”.

Paradoxalmente, portanto, a aparentemente evidente e bem-demarcada linha que separa os “apocalípticos” e “integrados” vai se mostrando mais e mais tênue, de modo que a condenação (prática típica do “apocalíptico”) se torne, na verdade, quase uma desistência de um mundo melhor. Ou seja, pelo fechamento de todas as possibilidades de mudança, o “apocalíptico” acaba por aceitar a realidade como ela é, tornando-se um “integrado”.

Eco alerta que é “profundamente injusto subsumir atitudes humanas – com toda a sua variedade, com todos os seus matizes – sob dois conceitos genéricos e polêmicos como ‘apocalíptico’ e ‘integrado'”, mas, seja para o que formos discutir ou analisar, “(…) teremos que fatalmente identificar algumas linhas metodológicas gerais.” (p. 7) Para um texto de tão parca envergadura, essa tipificação basta, pois traduz, apesar de seus exageros, a atitude sobre a qual esse texto se volta.

Parece que, pela forma como algumas condenações são feitas – em especial aqui aquelas acerca da ingenuidade -, as recobre um véu de afirmação que tem algo de “apocalíptico” tendendo ao “integrado”. Ao condenar Rousseau, por exemplo, pela sua suposta ingenuidade, parece fazê-lo sob uma pretensa convicção de que pouco ou nada pode ser feito no sentido de tornar o contrato social melhor ou a participação coletiva mais efetiva. Parece que se sugere, às vezes, que o melhor seria pô-lo no limbo do esquecimento. Não que Rousseau não tenha problemas, é preciso problematizá-lo também em suas limitações, mas não descartá-lo. E isso pode ser estendido também ao próprio Montaigne.

Condenar apocalipticamente algo é assumir nas entrelinhas que nada se pode fazer e que, portanto, nenhuma atitude nem nada que sejamos capazes de fazer seja suficiente para alterar a forma e a substância da realidade como a conhecemos. Isso é ser “integrado”. Portanto, jaz no delicado equilíbrio entre os extremos – num pólo “apocalípticos” e no outro “integrados” – a chave para repensarmos o problema da ingenuidade, cercando do máximo possível de questionamentos nossos “objetos”, para compreender-lhes em seus próprios condicionamentos, dinâmicas, subjetividades e historicidades.

ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. 2ª ed. Tradução de Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, s/d.