Não espere encontrar figuras como madames com casacos de pele ou magnatas perambulando pelas histórias de João Antônio. Leão-de-chácara, célebre obra da moderna literatura brasileira, lançada em 1975, não procura pôr o leitor em contato com as camadas altas da sociedade, mas precisamente com aquelas subalternas – não por opção, mas por subalternização de outras -, que encaram com toda a dignidade que lhes é possível possuir – e com uma dose precisa de malandragem – os mais diversos percalços que seu cotidiano lhes impõem.

Quem protagoniza ou narra suas histórias são malandros, garotas de programa, leões-de-chácara (porteiros e seguranças de boates), cafetões, trombadinhas, jogadores de sinuca, golpistas, enfim, um grupo que vive nas franjas das grandes cidades – à margem, se preferirem -, e que se vale de um curioso e criativo arsenal de expedientes para conseguir aquele almejado lugar ao sol, nem que seja só uma beirinha ou uma pequena réstia de luminosidade. São o que o autor chama de “merdunchos”.

Leão-de-chácara não se apóia em sentimentalismos nem em vitimizações para mostrar quão duro é o dia-a-dia desses sujeitos. A situação de subalternidade aparece a partir da maneira como seu cotidiano é descrito e como os “merdunchos” conseguem não se deixar subsumir em meio às intempéries. João Antônio conduz o leitor pelos becos e ruelas que ficam à beira de cidades, como São Paulo e Rio de Janeiro, para mostrar como a vida que se desenrola ali o faz sob suas próprias normas, códigos e valores, e que não vive a lamentar-se por sua condição, nem a dela se esquecer.

Personagens como Joãozinho da Babilônia e Paulinho Perna Torta são bons exemplos de como o autor constrói suas histórias: ambos vivem de biscates e expedientes que certamente despertariam reprovação para além daquelas áreas, mas que naquelas condições e naquele ambiente em quais existem, mudam de sentido e se revestem de toda uma diferente significação. Ambos estão envolvidos com trambiques, prostituição, vadiagem e práticas clandestinos, mas nem por isso se tornam vilões, justamente porque as circunstâncias e circunscrições sociais nas quais ocorrem não são as mesmas que se aplicam em outros lugares. O ambiente onde se passam as histórias de Leão-de-chácara não possui recorrência geográfica, mas partilha de uma cartografia social e moral muito semelhante.

O livro não é uma reabilitação de todos esses sujeitos perante o “restante” da sociedade. As histórias do porteiro-segurança de boate Jaime, por exemplo, mostra como a vida dele não precisa dar satisfações às demais classes sociais para existir. O regime de sobrevivência em que se encontra constantemente não o faz inferior, embora seja mais precário, mas o torna diferente em múltiplos sentidos. Dessa maneira João Antônio faz sua obra não ser ingênua: não é uma recuperação social, é um retrato que existe à revelia da não-periferia, não a ignora, mas a ela não se justifica. E o faz sob seus próprios termos e dinâmicas.

Sem deixar de lado a aridez da vida na periferia mas sem querer tornar em pobres-diabos fatalmente condenados todos os sujeitos que nessas condições vivem, João Antônio extrai a matéria-prima do cotidiano, utilizando-se, inclusive, da peculiar e exuberante linguagem e vocabulário do falado. O autor não entra em extremismos, em um lado explora a trajetória de Paulinho Perna Torta, um malandro que começa nos patamares mais baixos da clandestinidade e consegue ascender ao posto de um dos grandes chefes da periferia. No outro, as reminiscências melancólicas de “Três cunhadas – Natal 1960”, em que uma família encara as agruras de trabalhos mal pagos, esperanças e dissabores da lida diária com bravura. E assim é a toada do livro, sem fazer dos retratados – os “merdunchos” – senhores absolutos de seu destino nem em puros joguetes ao sabor das amarguras.

Seja por conta da linguagem malandra e de fala macia que toma o livro, seja pelo retrato cheio de vida do cotidiano na periferia, seja pela pujança de seu ritmo e pelo retrato inusitado de sujeitos tidos como essencial e estereotipicamente criminosos ou vítimas, Leão-de-chácara é um grande livro. É possível entrever a experiência do autor, o conhecimento que ele possui sobre todo esse “mundo” e os personagens reais que o habitam, é possível sentir sua velada admiração por suas dinâmicas e seus valores, exatamente aqueles que enriquecem e tornam tão subversiva sua obra e sua leitura.

Segue abaixo lista com os títulos dos textos e contos contidos na edição da Cosac Naify:

-Prefácio (Tania Macêdo)
Três contos do Rio
– Leão-de-chácara
– Três cunhadas – Natal 1960
– Joãozinho da Babilônia
Um conto da boca do lixo
– Paulinho Perna Torta
– O leitor como parceiro (João Antônio)
– O [sub]mundo de João Antônio (entrevista do autor para a revista Crítica, de 1975)