O certo é que um dia, todo mundo se torne órfão. Uma  regra que, como todas as outras, tem suas exceções. Exceções bastante dolorosas, como as que me fizeram ouvir essas palavras – foi minha avó que me disse isso, alguns anos atrás, quando uma tia minha sofreu um acidente automobilístico e estava com a vida por um fio. Felizmente minha tinha salvou-se, mas essas palavras e esse tipo de situação ficaram em minha cabeça. E voltam, inevitavelmente, com Fora do tempo, mais recente ‘romance’ do israelense David Grossman.

Isso porque o livro é tortuosamente a respeito de Uri Grossman, filho do escritor e uma dessas exceções: Uri nunca será órfão, pois morreu em 2006, no conflito israelo-libanês – dois dias antes do cessar fogo defendido publicamente por seu pai. Publicado em 2011, Fora do tempo é um lamento elegíaco de David pelo filho morto, um kaddish por alguém que devia sobreviver a ele.

Usei a palavra ‘romance’ entre aspas. Pois, na verdade, não se trata de um romance. Antes disso, é qualquer coisa entre um poema e um drama, com certa intenção de prosa em verso. Algo bastante confuso – mas que encontra uma profunda e bela ressonância no texto.

A história é a seguinte: um homem perde seu filho na guerra, fala com a esposa e, apesar de ela argumentar contra, decide ir até algum lugar, cuja localização e natureza não ficam bem claras. A única coisa que se pode entender bem é que para tal lugar vão os pais dos filhos mortos, esses dolorosos órfãos invertidos, e que ninguém nunca voltou de lá – onde parece estender-se o luto, como se esperandoo retorno dos mortos como condição para seu término. É uma paisagem profundamente onírica e poética, em que cada palavra escrita pro Grossman não apenas molda a paisagem, mas ressignifica tudo o que foi dito antes. Por isso, mesmo que existam personagens, a fronteira entre elas e delas com o cenário é fluida, difusa.

E talvez isso faça com que a história seja, justamente, o menos importante. A sonoridade dos versos e as imagens que a leitura evoca se juntam, como que para pintar um quadro que é bastante expressivo, mas muito mais abstrato do que figurativo. De certo modo, penso que Grossman compõe como certas fases da pintura de Kandinsky, em que ainda existia algo de concreto retratado, mas bastante difuso – e quase que apenas como pretexto.

Eu mencionei a sonoridade, o que merece uma menção ao trabalho de Paulo Geiger, que traduziu a obra do hebraico. Tarefa que, a julgar pelos meus (parcos) conhecimentos de hebraico e pela nota do tradutor no início do livro, foi bastante difícil. A sonoridade própria do hebraico é de uma natureza que, para ouvidos mais acostumados às línguas neolatinas e ao inglês, parece mais dura, mas, ao mesmo tempo, possui mais ressonâncias. E Grossman trabalha o tempo todo com essas características da língua, de maneira que poucos poetas conseguem. Coube a Geiger transportar isso tudo para o português, língua bastante distinta e muito mais fluida. Não tive contato com o texto original, mas me parece ser um trabalho bastante feliz.

Com tudo isso, Fora do tempo, é um dos livros mais difíceis de Grossman – apesar de ser um dos ‘menos densos’ e de ‘leitura mais fácil’ (rápida). É construído a partir de sutilezas que podem, na imensa maioria das vezes, passar desapercebidas: é um som que se repete quando uma determinada personagem fala e que ressurge mais para frente, na fala de outra. São cenas que se entrelaçam e se separam, sendo difícil precisar quando cada coisa acontece -acredito que como o próprio luto, como o calar e o lamentar de Grossman. Quiçá, apesar de todo o peso e todo o silêncio presente na obra, Fora do tempo seja o tipo de livro para se ler em voz alta – para que, além da história, percebam-se as texturas e cores da poesia desse que, pessoalmente, considero um dos melhores trabalhos de toda a literatura hebraica contemporânea.