Maria Dolz trabalha em uma editora em Madri onde tem de conviver com egos, pedidos e manias de escritores. Todos os dias, vai ao mesmo local tomar seu desjejum, o que sempre a atrasa. Antes fosse pela falta de tempo ou atrasos pessoais, na verdade, ela se mantém atenta a um casal que lhe inspira felicidade. Ela os apelida carinhosamente de Casal Perfeito. Constrói em sua mente a vida dos dois antes de todas as manhãs dividirem o mesmo espaço físico que ela, como o porquê de estarem naquele local dia após dia. Esse ritual matutino de observação a faz querer trabalhar e imaginar, por horas a fio, o quanto a rotina deles é perfeita. Mas Maria avisa, de antemão, que a última vez que Luisa, a esposa, viu seu marido, Miguel Desvern, fora durante um café da manhã que os três partilharam no mesmo local – e que pela primeira vez ela recebeu um aceno -, pois no final do dia de seu aniversário ele seria brutalmente assassinado a facadas.

Os enamoramentos, do madrileno Javier Marías, lançado em setembro pela Companhia das Letras, é um resumo desses acontecimentos. A primeira metade é o desmembramento sobre a morte de Desvern, uma fatalidade carregada de ironia, e suas consequências sobre as pessoas ao seu redor. Ou no que julgar Maria. O mundo perfeito dela se desmantela, e ela passa a sentir as dores de Luisa quando esta recebe a notícia e seus dias que seguem, e as dores das facadas junto aos derradeiros pensamentos de Miguel. Ela explica, para não haver enganos, que não é apaixonada por Miguel Desvern; gosta do casal, da unidade que representam. Todo esse sentimento sem conhecê-los no mundo elementar dos homens não existe. É uma grande parte, quase um todo, de divagações e monólogos internos.

As digressões da narradora se infiltram durante monólogos de outros personagens e também durante seus próprios, além de interromper linhas de pensamentos para acrescentar uma informação, seja relevante ou não. Isso se torna um trunfo no entretenimento da obra, os devaneios e suposições são tão bons, e tão convincentes, que se deve ficar atento quando voltamos de um travessão ou aspas inserido por Maria. Essas elucidações e epifanias são resultados do vouyerismo praticado pela personagem e presente em passagens – como a do hotel – de Coração tão branco e em diversos contos de Quando fui mortal, ambos de Javier Marías. Observadores do cotidiano, questionando atos, admirando o amor e também a violência, muitas vezes no campo das ideias – como ocorre com Maria ao imaginar como foram os últimos minutos de Miguel Desvern ao ser apunhalado – e verbal. É viciante a forma de pensar da narradora, os elos que cria entre a realidade e suas deduções. Por exemplo, para explicar o que a viúva pensa sobre o que passou pela mente de seu marido antes dele morrer, no dia de seu aniversário. Ou como Miguel deixa de existir após a morte, vão junto dele o nome e as lembranças, e nem mesmo o último lampejo de pensamento poderá ser recuperado por terceiros – só na imaginação, talvez.

O livro aborda vários tipos de amor, ou melhor, do enamorar – do tomar para si. Do platônico ao carnal, do patético ao obsessivo. Onírico e melancólico. Maria Dolz  observa de longe o ato de enamorar até encontrar-se em um. Ela se nega a aceitar a situação de estar enamorada e vive um dilema de não questionar e aceitar ser uma mera amante. De tão conformada com essa circunstância não assume intimidade alguma, inclusive chama seu amásio somente pelo sobrenome. Como os pensamentos da narradora estão em aberto, é possível saber a eterna berlinda em que se encontra: sabe que o homem por quem está apaixonada não a quer e continua a ir para a cama com ele sem saber se voltará em outra ocasião. O caso da viúva é bem mais triste. Notar a ausência de Desvern impregnada ao lado de Luisa e a desorientação que ela sente, sempre falando no presente com a primeira pessoa do plural, é tocante. Quando comenta sobre os filhos é menos sensível e muito mais crua do que dá para se imaginar.

Javier Marías transforma a verborragia em labirinto, levando e trazendo assuntos a todo o momento e a cada nova linha, sem mostrar a saída. Um fluxo de consciência em vários momentos, um pouco desconexo, mas resumido brilhantemente em duas ou três palavras ao final do raciocínio – no melhor estilo Adorno da ficção. Na divisão de pensamentos de sua personagem principal, aparece o melhor amigo de Desvern, Javier Díaz-Varela. Um homem muito belo, solteiro convicto que cria uma ponte entre a morte e a presença dos mortos no plano terreno, comparando a história de O coronel Chabert (o livro de Balzac vem junto a edição brasileira de Os enamoramentos) com citações de MacBeth, para atormentar, perturbar e mexer mais ainda com os pensamentos da protagonista. Os embates das conversas entre Maria e Javier dão um tom delicioso para a narrativa. Aliás, os diálogos extensos de Os enamoramentos são um aperitivo à parte e quase imbatíveis por criarem a tridimensionalidade dos personagens. Não é determinante, portanto, a solução do mistério, do suspense, mas até onde ele pode levar seus personagens.

Os enamoramentos muitas vezes desperta a vontade de ler em voz alta e também de tentar burlar o labirinto, mas o caos superlativo da narrativa é necessário, felizmente. Maria Dolz arrebata, prende e alivia tudo em uma espiral, ou furacão, de palavras e devaneios. Javier Marías não é dos ficcionistas mais fáceis de ser lido, tampouco é dos mais difíceis. É preciso maturidade e atenção. A escrita segue uma linha de raciocínio lógico, mesmo que não aparente de início, que prende a cada vírgula, a cada dois pontos e a cada travessão. Uma experiência de narrativa indescritível que aborda o amor, esse assunto muito debatido na literatura, mas sem se entregar aos lugares-comuns.