Balzac é um dos mais conhecidos nomes da literatura francesa e universal, tanto por seu talento em retratar com vivacidade e apuro os costumes de um período como também por sua prolífica produção – basta dar uma olhada no volume de A comédia humana para se ter uma ideia disso. Lendo O coronel Chabert tive uma amostra do talento do autor e de sua admirável capacidade de compreender o “espírito” e a “essência” de um tempo histórico através das trajetórias individuais de seus personagens e dos artifícios da ficção.

Chabert era um oficial do exército francês que alcançou suas mais gloriosas oportunidades nas campanhas napoleônicas. Ele era casado com Rose Chapotel e gozava, tanto quanto sua condição o permitia, dos recursos pecuniários para levar uma vida relativamente estável e folgazã apesar das intempéries militares que faziam parte de seu ofício. Em uma dessas – mais precisamente em Eylau, 1807 -, ele foi dado como morto no campo de batalha, mas, no último segundo, já na vala mortuária coletiva, gritou por socorro e foi atendido: o ferimento não fora, afinal, fatal. A partir daí, desfigurado e oficialmente em óbito, Chabert passa a empreender uma existência um tanto diferente daquela que levava até então.

Atrás do front, na França napoleônica, sua esposa, sabendo do óbito do marido, enluta-se. Mas não por muito tempo. O passar do tempo levou-a a conhecer um aristocrata, o Conde Ferraud, que lhe proporcionou uma luxuosa vida e que lhe deu filhos, algo que Chabert não lha havia proporcionado.

O imbróglio está virtualmente dado, mas só se consuma quando Chabert, ao voltar de suas campanhas militares, chega a Paris e procura o cartório de Derville. Esse ouve a história de Chabert e, comovido embora cético, resolve ajudá-lo. Ao cabo de poucos dias, no entanto, lhe apresenta os resultados de suas buscas e pesquisas, e revela que as coisas haviam mudado de tal forma que ele havia se tornado, nesse novo contexto, mais um estorvo do que propriamente uma revelação bem aventurosa.

Eis exposto o cerne da trama de O coronel Chabert: a morte do militar foi uma tragédia, mas uma tragédia maior ainda parece ser sua volta à vida. Com que recursos quer Chabert clamar por sua esposa novamente? Que vida poderia dá-la? E quanto aos filhos que não são seus mas que são dela? E, nesse ínterim, o quereria ela de volta? Em que condições morais e espirituais tal questão pode ser resolvida?

Balzac, com o toque de mestre, torna essa tragédia pessoal em um drama histórico. Chabert foi um dos sujeitos que fez carreira no exército napoleônico, que encontrou estabilidade e glórias na França que Bonaparte havia ensejado; mas via-se agora, com a deposição dele, em maus lençóis, tanto individualmente quanto em relação ao seu grupo social. Sua esposa, por outro lado, vive o lado reverso da medalha: a morte do marido lhe possibilitou que ascendesse e vivesse, juntamente com seu novo marido, as glórias aristocráticas que Napoleão havia assegurado no Primeiro Império Francês.

Assim, Balzac amarra a trama individual a um aglomerado de outros fios, tornando-os um cabo firme e coerente, fazendo o drama pessoal ressoar na grande estrutura social francesa e o movimento histórico em nível mais geral ecoar no âmbito individual. Os personagens de O coronel Chabert são “tipos”, refletem em sua individualidade caracteres sociais da época de Balzac. Chabert é Chabert, uma persona ficcional, mas é a síntese literária do grupo social dos inúmeros soldados que construíram sua carreira nas guerras napoleônicas. A condessa Ferraud é uma personagem, mas é também os resquícios daquela França aristocrática que tinha sido profundamente abalada pela década revolucionária, e que encontrou no governo de Napoleão as condições para, aos poucos, ir reconstruindo-se e a todos os seu rituais.

Numa obra de menos de cem páginas, Balzac é capaz de estender sua ficção por uma extensão sócio-histórica tão grande, mostrando não só um talento narrativo deliciosamente cadenciado, mas também uma percepção social e histórica – podia ser também sociológica e historiográfica – apuradíssimas e muito argutas.

O resultado disso tudo, desse exercício analítico e dessa tradução literária da realidade – O coronel Chabert -, é um livro que “funciona” em todos os âmbitos, como ficção, como trajetória individual, como perspectiva coletiva, como documento histórico, enfim, como literatura da melhor qualidade.