Esta é a primeira autora do Desafio – Autoras de Literatura Contemporânea Brasileira que eu nunca encontrei pessoalmente. Então, não tenho historinha interessante na introdução dessa vez. Escrevo isso não sem um pouco de mimimi mental. Eu teria trocado dezenas dos encontros literários que presenciei aqui em Curitiba por uma, duas horinhas de Adriana Falcão ao vivo.

Quase todo brasileiro já deve ter visto algum dos programas com roteiros dela. Basta ver a lista no IMDB: não são poucos. E é interessante que seja um nome de destaque em roteiros para televisão: uma das coisas que mais atraem em sua escrita é justamente a sua capacidade de criar diálogos bons, verossímeis e sonoramente agradáveis.

* * *

Eu ouvi falar dela por conta do filme A máquina, dirigido por João Falcão, seu marido à época – o “à época” se deve à possibilidade de que os dois não estejam mais juntos (a Wikipédia é bem vaga nesse sentido). Ele, o filme, é uma adaptação de uma peça de teatro que, por sua vez, foi baseada na obra de Adriana Falcão.

A história é a seguinte: um rapaz – Antônio de dona Nazaré – ama uma moça bonita – Karina da rua de baixo. Os dois vivem na cidade de Nordestina, que é pra lá de Caruaru (PE): o fim do mundo. Ela vive pedindo (e perguntando) coisa difícil e, ele, inventando (e respondendo) tudo para ela. Até que chega a hora em que ela quer ir para o mundo, ser artista de novela. E ele precisa responder que, no lugar disso, vai lá, só para trazer o mundo para ela. “Nada podia estar mais afastado um negócio do outro do que Nordestina do mundo”, mas ele vai mesmo assim. Por ser filho do tempo (não tinha contado isso ainda, né?), é justamente o bendito que ele usará em seu plano: para que o mundo vá a Nordestina, ele promete viajar no tempo, na frente de tudo quanto é câmera. Se não for bem-sucedido, uma máquina o estraçalhará em pedaços. (O final do filme é brutalmente diferente do que há no livro: quando começar a tocar Chico Buarque, não tenta segurar o choro, não. Faz mal pra saúde.)

É uma história de amor. E uma história de viagem no tempo. E uma história de uma máquina assassina. E uma história bem nordestina e brasileira. Nunca que eu ia esperar tanta coisa legal junta no mesmo livro.

Anteriormente, apontei o tino da autora para diálogos. O narrador do livro meio que “conta” a história para o leitor, desde muito antes do “tempo de Antônio, chamado assim desse jeito, o tempo de Antônio, como ficou conhecido esse tempo”, que foi o “mais maluco dos tempos”. Não como quem conta algo usando a escrita, mas como quem conta um causo. Ou seja, o livro é uma fala imensa.

Nunca tinha reparado que um livro podia ter sotaque. Digo, há muitas tentativas canhestras por aí de deixar a escrita mais oral, que me soam como má literatura. (Pensando bem, qual a razão da modéstia? Elas são mesmo má literatura.) Definitivamente, este não é o caso da obra de Adriana Falcão. Eu percebi o sotaque nordestino do texto e, em poucos minutos, recuperei um sotaque que nunca tive. (Pequena explanação: sou recifense, mas desde criança falo de um jeito esquisito e misturado; 12 anos longe da terrinha tornaram minha fala uma mistureba medonha.) Era como se tivesse voltado a Pernambuco e visse todos falando daquele jeito tão característico. Deixei-me levar um pouquinho e a aulinha-de-sotaque/leitura foi mais eficaz do que duas semanas em, sei lá, Porto de Galinhas!

Pense numas linhas gostosas de se ler: lia/leio em voz alta e tudo…

E foi mesmo na frente da igreja que a vida de Antônio deu uma volta medonha, pois, no que viu Karina, seu coração disse pra sua cabeça, vá, e sua cabeça disse pra sua coragem, vou, e sua coragem respondeu, vou nada, mas sua boca não ouviu e beijou Karina bem ali, no meio da praça, e a boca de Karina não disse não, e nem poderia, pois estava por demais ocupada.

Falar sobre esse livro demanda ler alguns pedaços, nem que não os cite. O problema disso é que, não importa se eu já o li mais do que 10 vezes (juro que não é exagero: o livro é fininho e eu não consigo ler um trechinho só; quando tentei digitar só um pedacinho preferido do livro, o começo, acabei transcrevendo metade dos caracteres da obra inteira): eu sempre me emociono pacas. Pacas. Muito mesmo. O que é difícil de explicar para quem não leu, porque é o tipo de realização artística que parece simples demais. Tipo “ah, isso eu faço”.

Parece, mas não é: “Desculpa, amigo, mas você não faz, tá?”

Tento escrever o mínimo possível para que (1) não consiga estragar as surpresas de quem for ler e para que (2) não desista do texto pela metade e vá chorar em posição fetal debaixo do chuveiro.

É isso.

* * *

Durante algum tempo, achei que Adriana Falcão, autora de um dos meus livros favoritos, não poderia entrar nesse desafio pela simples besteira de eu não ter lido mais do que um romance dela. Passeando por uma biblioteca, encontrei um exemplar de A comédia dos anjos e pensei, no meu bom português, “já é!”.

O romance é mais divertido e ainda mais rapidinho de ler.

“Caríssimos irmãos, é preciso ter fé, força e coragem para seguir em frente, acreditando que tudo que Madalena construiu durante a sua permanência entre nós continuará vivo em nossos corações, através de sua lembrança, dos seus ensinamentos, do amor, da generosidade, do desapego, do equilíbrio, da paz e da harmonia que marcaram a sua passagem pela Terra.”
– Ele não conhecia a vovó? – Artur estranhou.
– Enterro tem que ser bem triste – explicou Marcelo.
“Na verdade, irmãos e irmãs, a tristeza causada por essa passagem deve se converter em alegria, pois Madalena cumpriu fielmente a sua missão e apenas partiu ao encontro de Deus, nosso pai e criador, para agora habitar em Sua casa.”
– Coitado de Deus – Paulo murmurou.

Não se desespere: não é surpresa nenhuma que a dona Madalena morre. Isso se dá logo no começo. Como se pode ver pelo trecho, ela também não é flor que se cheire. E, se o verbo está como “é”, em vez de “era”, isso se deve à pior parte: no outro dia ela está de volta, para fazer vitamina pro Artur (1000 Tuca Points para o escritor que usa o meu nome, ainda que sem o “h”) e para se meter na vida da Edith, sua filha, que não pode voltar para o Paulo, o “cafajeste”, e tem que se casar com o Marcelo, o dono de um bar.

O bar rodava.
Sua cabeça tombou no balcão.
Foi então que ouviu a voz de dona Madalena.
– Você é realmente um incompetente. Fica aí enchendo a cara enquanto o cafajeste está lá sozinho com a Edith.
Levantou os olhos.
Lá estava ela.
– A senhora vai me desculpar, dona Madalena, mas a senhora está morta.
Ela pegou o uísque e bebeu direto da garrafa.
– Pra você ver como é que são as coisas. A pessoa já não pode nem morrer em paz.

É tudo uma trapalhada só. Tem os famosos quiproquós (típicos de obras intituladas com “A Comédia”, título que remete muito facilmente a A comédia dos erros), tem história de amor, tem história de fantasma, tem curiosidades futebolísticas e tem muita gente tendo que aprender a lidar com uma coisinha chamada saudade. Só não tem sotaque nordestino: tentei ler desse jeito a obra, mas a oralidade de A comédia dos anjos demanda um carioquês ou um paulistanês, creio. 

Claro que não podemos nos esquecer da velhinha amostrada que voltou do túmulo e quer dar uma bronca em quem não foi em seu enterro:

– Isso está muito mais para aniversário de criança do que para um lugar milagroso – comentou o fantasma.
As mulheres presentes ficaram furiosas.
– Nós trabalhamos feito umas mouras e você ainda acha ruim?
– Se não gostou, desarrume tudo e arrume do seu jeito.
– Só não peça mais a nossa ajuda.
– Você passa os abacaxis pra gente e depois vem reclamar!
– E você que nem foi no meu enterro? – Dona Madalena disse na cara de dona Zélia. – Essa eu levei pro túmulo e jamais vou esquecer.
Os homens não disseram nada.
Não era mentira.
Não era ilusão
Não era boato.
Não era cachaça.
Era assombração da braba.

Não é um A máquina, mas dá para se divertir e se emocionar quase tanto quanto.

* * *

Persiste, então, a vontade de dar um abração na autora, quando finalmente conseguir vê-la ao vivo. Espero que não a assuste demais. Mas, se assustar, vai ser coisa pouca pra quem já escreveu sobre máquinas assassinas e assombrações das brabas.