A literatura norte-americana atual possui uma safra de autores muito interessantes, os quais, cada qual a seu modo, têm tentado retratar os dilemas impostos pelo desenvolvimento histórico ocorrido nos Estados Unidos, naquilo que alguns chamam de pós-modernidade. Don DeLillo é um dos nomes de maior peso nesse sentido, não somente por sua representatividade nesse cenário, como também – e principalmente – na preocupação de pôr em relevo a situação humana na contemporaneidade e todos os dilemas, desafios e a angústia que a permeiam.

A fragmentação parece ser uma das marcas mais contundentes da atualidade. A dificuldade da unidade, a aparente incapacidade de se encontrar um denominador comum, que oriente esforços coletivos – sem que sejam esses advindos de um processo de massificação – tem criado uma insularização tanto individual quanto em pequenos grupos, fazendo horizontes de luta política, outrora tão fortes, se tornarem mais e mais estreitos – ainda mais num contexto pós-dissolução da União Soviética.

DeLillo não está preocupado em estabelecer um programa político atual, ou pelo menos não necessariamente. Sua literatura, como bem ressaltou Salman Rushdie, se volta em grande medida à “desumanização” de que têm sido testemunha os dias atuais. Em Cosmópolis (2003, Companhia das Letras), por exemplo, ao acompanhar a viagem do milionário Michael Packer em Nova York para cortar o cabelo, DeLillo põe em evidência a solidão no meio da multidão, a frieza em meio a todo o calor humano em potencial, contido, entretanto, nas barreiras da individualidade.

Buscando compreender essa “experiência da (pós-)modernidade” é que boa parte do monumental romance Submundo, publicado em 1997, se desenrola. O livro, pela organização dos capítulos, pela galeria de personagens, pelo desenvolvimento da trama, pelo amplo recorte de tempo que abarca e pelos temas nos quais toca, é uma ambiciosa tentativa de retratar o engendramento dessa experiência e como os sujeitos têm lidado com ela no desenrolar das tramas da História.

Em 1951, o antológico jogo de baseball em que os Dodgers enfrentaram os Giants no estádio Polo Grounds é obnubilado por um outro evento, crucial para aqueles tempos de Guerra Fria: um teste nuclear conduzido pela União Soviética. A simultaneidade desses dois acontecimentos marca o início de Submundo e explora, pela diferença entre suas naturezas, uma questão recorrente da literatura de DeLillo: o papel do espetáculo na sociedade norte-americana e na vida contemporânea em geral, isto é, como a profusão de imagens, sons e informações alimentam uma superficialidade, um sensacionalismo e um imediatismo frenético que causa mais confusão que lucidez.

Nick Shay, um homem que gerencia o tratamento de lixo, tem a misteriosa morte do pai, James Shay, como uma de suas obsessões pessoais. O caráter emblemático advém do fato de que ele se insere nas tramas da sociedade (pós-)moderna através de um de seus elementos mais preocupantes e recorrentes: o lixo. O protagonismo do lixo, numa sociedade com tão altos padrões de consumo e desperdício como a atual, é realçado com o trabalho de Nick, o qual, embora tenha uma boa casa e relativa estabilidade material, vive em meio aos dejetos e detritos – uma das facetas do submundo -, um ambiente de desolação constante, por meio do qual ele tenta construir uma vida. A micro-situação de Nick é análoga à da civilização moderna, pois, segundo DeLillo,

“A civilização não emergiu e floresceu à medida que os homens passaram a representar cenas de caça em portões de bronze e cochichar filosofia à luz das estrelas, tendo o lixo como subproduto nocivo, varrido para o lado, esquecido. Não, foi o lixo que emergiu primeiro, incitando as pessoas a construir uma civilização como reação a ele, num gesto de autodefesa. Nós fomos obrigados a achar maneiras de jogar fora nosso lixo, aproveitar o que não era possível fazer sumir, reprocessar o que não era possível aproveitar. O lixo pressionava. Acumulava-se, espalhava-se. E nos obrigava a desenvolver a lógica e o rigor que nos levariam a fazer investigações sistemáticas da realidade, à ciência, à arte, à música, à matemática.” (p. 256)

Dos cenários desoladores dos lixões e depósitos de lixo nuclear, DeLillo conduz para galpões onde aviões de guerra desativados se tornam a base das pinturas de Klara Sax, uma artista que tenta encontrar espaço para contemplação no imediatismo das relações modernas. Ela busca no ambiente urbano e industrial expressões de arte que contemplem os sentimentos e a consciência dos conturbados tempos modernos, encontrando, nesse ínterim, o grafitter conhecido como Moonman 157, que ataca carros de polícia, muros e vagões de trem e de metrô para produzir sua arte.

Ao lado de Klara ainda conhecemos Cotter Martin, o garoto que conseguiu a bola do jogo dos Dodgers contra os Giants e seu pai, Manx Martin, um alcoólatra, que a toma furtivamente para vendê-la como raridade. Manx Martin é quem nos conduz por algumas das passagens mais pungentes e desoladoras de Submundo, quando anda pelas ruas de Nova York em busca de um comprador, vivenciando o conflito moral de ter se apropriado da bola do filho e de estar querendo lucrar com a venda dela.

A galeria de personagens ainda conta com curiosas personas: um serial killer que roda pelos Estados Unidos para cometer seus crimes; a esposa de Nick, que mantém um affair extraconjugal; a irmã Edgar, uma freira que busca sobreviver e ensinar algo em meio às contradições e miséria gritantes que existem no Bronx; Matty Shay, o irmão mais novo de Nick, que depois de ir para o Vietnã, volta aos Estados Unidos e se junta a um think tank. Ainda temos figuras históricas, como o comediante Lenny Bruce, o chefão do FBI J. Edgar Hoover e o escritor Truman Capote.

Embora não seja um livro dado a virtuosismos no que diz respeito a intrincadas construções narrativas, DeLillo conduz as diversas histórias indo e voltando no tempo. Uma vez que dispõe de uma extensão cronológica bastante flexível – praticamente meio século -, o escritor se vale dela para perscrutar as transformações que desembocaram nos tempos contemporâneos, nos quais a angústia parece ser o sentimento dominante.

Submundo é um painel da vida contemporânea e as metamorfoses pelas quais ela passou desde os anos 1950 – especialmente em termos subjetivos -, do contexto da Guerra Fria – marcada pela disputa entre os horizontes ideológicos capitalista e comunista – até o mundo que sobrou após ela – marcada por um sentimento de fechamento de horizontes e de um vazio vivenciado tanto individual quanto coletivamente. A impressão que o desenrolar da trama causa é de que passou-se de um enfrentamento extremo para um afrouxamento das disputas, que gerou uma confusão pelo caráter difuso que o processo trouxe.

Submundo, aliás, é, tanto formal quanto tematicamente, difuso.

Difuso na forma por conta da construção não-linear da trama, com questões orbitando de maneiras distintas, sem uma estrutura clássica para explorá-las. São os pequenos fragmentos – que parecem ser a paradoxal unidade e natureza da existência contemporânea – que devem ser compilados e postos em perspectiva para que surjam os problemas. DeLillo reflete aí a própria situação inconclusa dessa conjuntura histórica.

Difuso na temática por conta do vai e vem da vida dos personagens. Em um capítulo conhecemos Nick criança e o desaparecimento de seu pai, em outro o vemos a lidar com pilhas de lixo e o problema do lixo atômico, e noutro, ainda, o vemos nos tempos de faculdade. O mesmo se dá com Klara Sax e com outros personagens da história. A construção da trajetória de cada um é, portanto, difusa, cabe ao leitor costurar as partes do todo. A angústia, que ressalto como sendo um dos pontos de unidade do livro, permeia cada trama, seja Matty pesando as implicações da descoberta do átomo e do poder contido em seu núcleo, seja Klara Sax tentando encontrar inspiração numa modorra existencial, seja Ismael Muñoz (o Moonman 157) pintando anjos para representar as crianças mortas em sua vizinhança. Submundo às vezes parece um intermezzo entre dois momentos, no passado a Guerra Fria e a alternativa comunista, no futuro algo ainda por vir, que se distingua qualitativamente da era de hoje.

À sombra dos edifícios, cercado por uma multidão de solitários, num mundo conectado todo o tempo e alimentado pelas imagens e sons midiáticos, DeLillo tenta construir um mosaico da vida no mundo de hoje, que englobe as experiências discrepantes da existência para lhes dar alguma direção ou para desnudar-lhes a falta de uma. Os problemas formais, como escreveu György Lukács, são necessidades históricas no sentido de que estão irremediavelmente ligados ao seu tempo social e histórico. A natureza difusa de Submundo, portanto, é filha de seu tempo, um tempo no qual unidades são difíceis de se atingir e em que sínteses se perdem num oceano de experiências aparentemente individuais e inapreensíveis em conjunto, legando-nos não um mundo, mas um submundo.