Ainda não terminei de ler O conto da aia, da escritora canadense Margaret Atwood, mas há uma cena, mais ou menos na metade do livro, que me deixou pensando sobre a maneira como a ficção científica (ou ficção especulativa, como a escritora prefere) funciona. Mas antes de falar disso, preciso explicar um pouco sobre a história do livro. O cenário é do tipo distópico, ou seja, algumas circunstâncias favorecendo, a sociedade acabou abrindo mão de alguns direitos fundamentais (segundo os padrões de hoje) e antes que fosse possível uma reação organizada, os Estados Unidos já haviam se tornado uma teocracia cristã. Nesse novo Estado, as pessoas são dividas em castas, e há um rígido conjunto de regras a serem seguidas, que, como costuma acontecer em sociedades hierarquizadas, são aplicadas sempre com mais severidade à medida que se desce a pirâmide social.

Pois bem, à certa altura, duas persoagens param frente à vitrine de uma loja de preces automatizadas e observam as atividades. Lá dentro máquinas trabalham imprimindo orações ditadas por telefone, que são simultaneamente lidas em voz alta e logo em seguida apagadas. Tudo acontece automaticamente, não há ninguém que testemunhe essas preces. Na história, a função dessas lojas, por trás da aparência de piedade, é muito mais uma questão de status, uma disputa por ascensão na hierarquia, de maneira que não importa que alguém ouça aquelas preces, desde que os computadores não deixem de contabilizar, para esta ou aquela família, o número certo de encomendas feitas. Aquelas duas aias, por outro lado, pertencem a uma casta de poucos privilégios, e são levadas mais facilmente à herética dúvida: será que Deus ouve aquelas máquinas?

À primeira vista, pode parecer uma questão idiota, ou ao menos irrelevante: que importa saber isso? Não é uma invenção obviamente boba, uma fantasia da ficção científica? Não, na verdade não; a realidade, como sempre, consegue ser muito mais criativa. Como a própria Atwood comenta na história, existe um precedente real para essas máquinas. Entre os budistas tibetanos é comum o uso de uma “roda de oração” (não sei exatamente como costuma ser traduzido em português), um objeto cilíndrico em que são gravados mantras e que, ao serem girados, produzem um efeito equivalente ao que se obteria caso fossem diretamente declamados. Provavelmente você já viu algo parecido em algum filme ou documentário, como naquela cena antologicamente idiota da “Sessão da Tarde” em que o personagem de Eddy Murphy procura a adaga em O rapto do menino dourado (repare que ele gira a roda em sentido contrário ao usual).

Utilizar um objeto, operado manualmente, para transmitir uma prece ainda é algo mais ou menos natural, mas o que dizer dos upgrades tecnológicos? Primeiro vieram as rodas de oração movidas pela água ou pelo vento, e mais modernamente, aquelas movidas por eletricidade. E hoje temos à nossa disposição a mais completa culminação da técnica humana: o gif. Espantosamente, hoje qualquer um pode baixar uma imagem animada de uma roda de orações. Reformulando então aquela primeira questão: será que cada um de nós deveria manter um gif desses girando no plano de fundo de nossos computadores, para estimular nosso karma bom e reduzir o karma ruim?

Não me entendam mal, não estou debochando das crenças budistas, pelo contrário, minha intenção é justamente ressaltar que essas questões são relevantes, por mais absurdas que pareçam. Mais do que isso, gostaria de tentar mostrar que alguns escritores de ficção científica colaboram exatamente para conservar em nós a admiração frente a possibilidades tão estranhas como a de um gif capaz de melhorar nosso balanço kármico. Pode parecer absurdo, certamente é, mas o que escritores nos incentivam a manter sempre em mente é essa sensação de: e se fosse verdade?

Há um conto célebre de Sir Arthur C. Clarke chamado The Nine Billion Names of God em que um grupo de monges tibetanos (eles novamente) contratam uma empresa americana para instalar em um monastério impressoras que deverão produzir, em alguns poucos dias, todos os possíveis nomes de Deus. Feito isso, estará concluído o propósito do universo, e Deus poderá desfazer sua Criação. Simples assim. Mais uma vez, tudo isso parece bastante absurdo, mas e se fosse verdade? O que Clarke está colocando diante de nossos olhos, no fundo, é o incrível abismo que separa nosso conhecimento de qualquer possibilidade de certeza.

Entendo que esse seja um bom exemplo de que a ficção científica não é tanto sobre como este ou aquele gadget em si pode fazer, mas sobre o que a existência desse gadget signficaria. Em última instância, é uma experimentação com as próprias regras do mundo. Se os monges estivessem corretos, em qualquer dessas histórias, nossa concepção das coisas estaria totalmente equivocada, e é isso que vale a pena contemplar, ao menos por alguns instantes. A mera possibilidade de que estejamos errados é fascinante.

Nos trabalhos de Sir Clarke há um tema bastante recorrente, sobre o qual ele deve ter se debruçado muitas vezes, como uma fonte de admiração e espanto, e que serviria muito bem para ilustrar essa imagem da ficção científica. Só que o tema já foi tão desgastado pelas controvérsias que tenho até receio de parecer cuckoo ao mencioná-lo. Mas está lá, em todas as principais obras do escritor: 2001, Encontro com Rama, O fim da infância, As fontes do paraíso… Então, sem mais, pergunto, será que existe vida extraterrestre?

Obviamente Clarke era um entusiasta da possibilidade de contato com outras espécies, e também um otimista: os alienígenas de suas histórias tendem expressivamente para criaturas iluminadas, que de uma forma ou de outra auxiliam o progresso da humanidade. Mas ele experimentou, em tantas das suas histórias, quanto à maneira como esse primeiro contato poderia ser feito e quanto à maneira como as coisas se desenvolveriam. Imagino que a questão fosse simplesmente sedutora demais para que ele a deixasse de lado por mais de alguns anos. Esse é o poder irresistível das dúvidas que fazem girar a ficção científica. Como ele ilustrou certa vez: “Existem duas possibilidades: ou estamos sozinhos no Universo ou não estamos. Ambas são igualmente assustadoras.”