Muitos têm problemas com o gênero. Há os que sequer consideram a ideia de assistir a um filme-cantoria, especialmente se ele tiver quase três horas de duração e Russell-Gladiador-Crowe entre seus intérpretes. Mas aqueles que são fãs dos musicais (sim, eles existem), ou que ignoram a birra generalizada contra o gênero, encontram em Les Misérables, novo filme de Tom Hooper, uma agradável experiência.

Quando Hooper subiu ao palco do Oscar para receber o prêmio de melhor direção por O Discurso do Rei (2010), confesso que torci o nariz e mudei de canal. Era a Academia me decepcionando mais uma vez: “com Aronofsky, os irmãos Coen, David O. Russell e David Fincher entre os indicados, e merecendo muito mais!” – bradava eu, patético diante da tevê inerte. Mas diferente do que acontece com muito oscarizado, Hooper não caiu (ainda) na maldição dos louros e seu trabalho-pós-estatueta não decaiu. Pelo contrário, Les Misérables é um salto considerável em sua carreira.

Uma obra grandiosa, como o épico de Victor Hugo (1802-1885) merece. Após tantas adaptações deste clássico da literatura (só para Cinema e televisão a Wikipedia relaciona quarenta e oito, incluindo algumas brasileiras), a versão de Hooper pode ser questionada pela relevância e talvez parecer desencaixada com os dias atuais, mas certamente não se pode acusá-la de ausência de originalidade.

Demonstrando notável capacidade de releitura, Hooper realiza pontuais escolhas técnicas e mostra vigor e coragem para inovar com o clássico e por vezes tão odiado estilo musical-cinematográfico. Com uma steadicam ligeira, ele deixa atores e audiência na mesma altura, mas com takes por vezes desagradavelmente próximos, causa uma agoniante impressão de que o personagem vai bater a cabeça na tela. Ainda assim, o saldo de suas escolhas é muito positivo, levando o espectador ao chão de terra da conturbada França do século XIX, viajando pela prolífera trama com uma edição ágil e clareza cronológica.

Mas musicais se tratam de músicas, não é? Portanto, vamos a elas: assim como o original literário, as composições de Alain Boublil e Claude-Michel Schönberg, com letras de Herbert Kretzmer, também entraram para os anais da arte, tendo sua principal música, “I dreamed a dream”, inclusive, sido renovada com o recente sucesso da cantora Susan Boyle no show de talentos britânico The X Factor.

O que leva Les Misérables de Tom Hopper a um outro nível é a captura do áudio das canções no momento da cena – diferente do padrão musical-hollywoodiano de gravar primeiro em estúdio e filmar com playback –, acentuando a emoção dos atores.  Assim, o filme ganha ares de uma verdadeira ópera e seu público – se num cinema descente e com bom sistema de som – poderá sentir-se numa sessão de gala do Ópera House.

Acima das qualidades técnicas, dos belos figurinos e cenários, nesse filme brilham de forma fulgurante duas estrelas que vez ou outra se perdem em péssimas decisões de trabalho. Anne-Mulher-Gato-Hathaway é Fantine e comanda o primeiro ato da história. Seu ápice é na interpretação da já citada “I dreamed a dream”, onde revela toda a dor de uma mulher que, nas palavras da própria atriz: “se vê no fundo do poço e sabe que de lá não retornará”. Já a luz maior, o sol dessa obra, a quem aplausos de pé serão apenas justos é Hugh-Wolverine-Jackman, que com o amparo de figurino e maquiagem transpassa as várias fases de Jean Valjean, de prisioneiro faminto e furioso a prefeito generoso, com uma monstruosa habilidade de postura corporal, expressões e, sobretudo, capacidade vocal. Algumas das melhores canções do filme são de Valjean, em especial a de sua conversão, cheia de som e fúria (era a isso que Shakespeare se referia?), e a de nome “Suddenly”, composta especialmente para o filme.

Além desses dois monstros em cena, o outro destaque musical vai para Samantha Barks, como a jovem Éponine, que encanta mais do que a jovem Cosette. Já o problema na trama está na ausência de interesse que o romance entre Marius (Eddie Redmayne) e a jovem Cosette (Amanda Seyfried) desperta, já no terceiro ato da trama. Ambos, interpretados sem nenhum vigor, estariam mais adequados em Marie Antoniette (2005, adaptação embonecada de Sofia Coppola ao drama da rainha decapitada) do que aqui. Por fim, Russell Crowe (Javert)… bem, Russell Crowe dá pro gasto.

Assim Hollywood produz mais um musical, que vem recebendo elogios, arrecadando considerável bilheteria e sendo indicado a diversos prêmios (ao Oscar 2013 são oito). Acredito que o sucesso de um musical perante o público está num simples teste pós-sessão: se saímos da sala com pelo menos uma música na cabeça, um bom serviço foi feito. Confesso que até hoje me pego cantarolando “I dreamed a dream” (claro que nem proximamente tão bem quando Anne), “One day more” e “Red and black” – boas músicas, boas interpretações, um bom musical.

Filmes musicais são, sem dúvida, engraçados. Toda vez que assisto a um, fantasio sobre uma realidade com aquele formato, em que pessoas saem cantando e dançando pelas ruas pelo motivo mais banal, com coreografias aprendidas por osmose. Imagino as pessoas conversando em ritmo, as mãos se tocando, enfim, o ridículo da situação. Não entendemos, mas temos fetiche pela música e por mais que a tecnologia avance, os tempos e valores mudem, o espírito da época seja outro, desde O Cantor de Jazz (1927) o Cinema adora se sujeitar a essa maravilhosa loucura, tendo criado, ao longo dos anos, maravilhosas fantasias em verso e melodia. Les Misérables é a mais nova delas.