Kleber Mendonça Filho, para usar uma expressão popular, “chegou chegando” no Cinema nacional: estreante em longas, seu O Som ao Redor é uma experiência arrebatadora que conquistou a crítica e ganhou prêmios importantes. Crônica atualíssima sobre a classe média brasileira, metáfora do período escravagista e fazendo referências à ‘Casa Grande e Senzala’ de Gilberto Freyre, sua estreia é um primor de imagem e, sobretudo, som, e fez Caetano Veloso considerá-lo “um dos melhores filmes feitos recentemente no mundo” em sua coluna dominical no jornal O Globo.

Ainda divulgando o longa em festivais internacionais, o diretor, em entrevista a Folha de São Paulo no último domingo (17), causou um abalo sísmico de proporções ainda não totalmente cognoscíveis ao declarar:

“Minha tese é a seguinte: se meu vizinho lançar o vídeo do churrasco dele no esquema da Globo Filmes, ele fará 200 mil espectadores no primeiro final de semana.”

Sua crítica à mais poderosa produtora de Cinema brasileiro rendeu retaliação, que veio em forma de desafio proposto por Cadu Rodrigues, diretor-executivo da empresa:

“Desafio o cineasta Kleber Mendonça Filho a produzir e dirigir um filme e fazer 200 mil espectadores com todo o apoio da Globo Filmes! Se fizer, nada do nosso trabalho será cobrado do filme dele. Se não fizer os 200 mil, assume publicamente que, como diretor, ele talvez seja um bom crítico.”

Com isso, somou-se ao imbróglio o nicho de críticos cinematográficos brasileiros, e por isso acho que posso me valer de alguns comentários e levantar outras questões. Mas antes vale também trazer à tona a ultima declaração de Kleber Mendonça sobre o episódio, postada há pouco em sua página no Facebook:

Isso não me parece correto, pois o valor de um filme, ou de um artista, não deveria residir única e exclusivamente nos número$ (…) o sistema Globo Filmes faz mal à ideia de cultura no Brasil, atrofia o conceito de diversidade no cinema brasileiro e adestra um público cada vez mais dopado para reagir a um cinema institucional e morto.

Mais do que apenas um mexerico entre comadres, esse embate público revela problemas estruturais que já há anos desestabilizam o cinema brasileiro. Os comentários do diretor incitam reflexões sobre o processo burocrático do cinema e demandam discussões importantes e urgentes, pois tais problemas fazem com que obras importantes sejam ceifadas do circuito ou nem ao menos cheguem ao grande público.

O Som ao Redor, já em sua oitava semana em cartaz em pouco mais de uma dúzia de salas por esse extenso país, soma um público em torno de 70 mil espectadores – número tímido até mesmo para documentários nacionais. Raul – o início o fim e o meio, de Walter Carvalho, teve público de quase 162 mil espectadores, com distribuição da Paramount Pictures.

Mas como classificar a qualidade de uma obra cinematográfica apenas por seu público ou seus prêmios? Se fosse assim, Michael Bay seria um grande gênio e Woody Allen um pária. Se fosse assim, brigaríamos com a Academia por nunca ter dado um Oscar de direção a Tony Scott e não pela ausência de prêmios a Stanley Kubrick, Robert Altman, Charles Chaplin!

É comum que em minhas críticas aqui no Posfácio inclua informações sobre os prêmios recebidos ou indicações, especialmente nessa atual época pré-Oscar. Alguns amigos cinéfilos brigam comigo por isso, mas incluo tais dados mais por referência do que como atestado da qualidade.

A Globo Filmes, com o orçamento infinito dos cofres da Globosat, tem a influência e o capital para levar às telas produções que bem entender, mas invariavelmente nos traz produtos de péssima qualidade, como os recentes Os Penetras (2,5 milhões expectadores), Até que a sorte os separe (3,4 milhões) e As Aventuras de Agamenom (860 mil). Raras são as grandes obras que mereçam “aplausos de pé” dos críticos do jornal da própria companhia.

Do outro lado desse rio chamado cinema brasileiro, Histórias que só existem quando lembradas (3199 espectadores), Febre do Rato (11 mil) e Mr. Sganzerla – Os Signos da Luz e A Música Segundo Tom Jobim (ambos com dados de público indisponíveis) pelejaram por distribuição, passaram incólumes pela tela grande e só não foram instantaneamente obliterados devido a evidente qualidade.

Dados assim trazem ao debate outra questão, que diz respeito ao critério do público brasileiro. O ano de 2013 abre com De Pernas Para o Ar 2, penosa produção com Ingrid Guimarães, na liderança de público, com arrecadação próxima aos R$ 43 milhões.

Uma recente lei da Ancine estabeleceu a chamada ‘cota de tela’, forçando as redes de cinema a um número obrigatório de exibições de filmes nacionais. O resultado no primeiro ano (2007) foi redução do público de filmes nacionais, e uma rede de cinemas multiplex preferiu descumprir a medida (tendo de arcar com a multa) a manter em cartaz um sofrível filme nacional. Ainda assim, a lei é vista com bons olhos por alguns do meio, como o diretor Fernando Meirelles, e merece atenção especial num texto futuro.

Os pesados comentários de Kleber Mendonça Filho abrem o ralo de uma intricada discussão sobre as artes do Brasil, que inclui produtoras e artistas, distribuidoras, leis do governo, redes de exibição e na ponta da corda, o público, o espectador, eu e você.

Refletir sobre tais quentões nos ajudam, talvez, a entender porque nosso país não tem um Oscar para se gabar com os hermanos argentinos. Entender porque nossos diretores vão, invariavelmente na primeira oportunidade, fazer Robocops e On the roads em países de indústria melhor estruturada. Entender porque produções tão ruins, que juntam um bocado de atores novelescos e diretores limitados, fazem a diversão de um público que ainda não enxerga no Cinema algo além do entretenimento do domingo à noite. Entender, enfim, o que é, para que serve e quais são os propósitos do Cinema no Brasil.

Kleber Mendonça Filho, enrolado com o provincianismo da indústria nacional.
Kleber Mendonça Filho, enrolado com o provincianismo da indústria nacional.