Tenho encontrado ótimas surpresas na literatura africana. Desde Coetzee até Achebe, há uma porção de bons prosadores e cronistas a retratar o percurso histórico da África em suas generalidades e peculiaridades, dando visibilidade a questões presentes e passadas sob diferentes vieses e pontos de vista. Havemos de concordar que, ainda que lhes pese um estigma comum, existe uma complexidade e uma vastidão de culturas e povos na África que nem a literatura consegue dar conta de retratar, embora Mia Couto – bem como os demais escritores – esteja fazendo sua parte em trazê-las a lume.

Lendo A confissão da leoa, romance publicado em 2012, é possível perceber uma porção de pontos em comum com outros escritores africanos. A presença das culturas tribais e das milenares tradições é um desses pontos, e a forma como os caracteres mitológicos – oriundos de crenças longamente sedimentadas – se entrelaçam com os rumos históricos desses povos parece também ser uma questão recorrente e de primeira importância.

Conforme Mia Couto nos esclarece ao início do livro, a história foi inspirada numa viagem que ele empreendeu a uma região que estava sendo assolada por ataques de leões. Por conta disso é que, também na trama, o palco dos acontecimentos é a aldeia Kulumani, numa região do Moçambique que sofre do mesmo mal. E, tendo em vista a preocupação do autor em retratar esses eventos, é que a narração cabe a dois personagens: Arcanjo Baleiro, o caçador contratado para dar cabo dos leões; e Mariamar, uma moça da aldeia. Curiosamente, Mia Couto pouca participação concede ao personagem escritor, Gustavo Regalo, cujo papel é brevíssimo e totalmente coadjuvante.

Cada personagem enfrenta seus conflitos particulares. Baleiro tem um histórico familiar traumático, o irmão entrou em estado de choque e permanece numa casa de cuidados especiais, onde conta com o alento de Luzilia, sua noiva, pela qual Baleiro tem uma paixão. Mariamar tem o mesmo fardo das mulheres de Kulumani, que é o de serem tiranizadas pelos maridos e viverem num silêncio cruel e macambúzio. Mariamar perdeu a irmã num dos ataques dos leões, evento que aprofundou o desalento familiar e doméstico em que ela vivia.

A presença dos leões nas redondezas enseja o encontro dos dois narradores, sendo na contraposição dos dois pontos de vista narrativos – a partir dos olhos de alguém “de fora” e de alguém “de dentro” – que se encontra a riqueza da história de Mia Couto. Arcanjo Baleiro é mais realista e durão, sua formação num contexto externo ao da aldeia faz com que ele encare os fatos de forma mais objetiva, tendo em sua interpretação da realidade, seja dos hábitos das feras ou dos comportamentos dos habitantes de Kulumani, uma precisão que se espera também de sua espingarda na hora do tiro. Mariamar, por sua vez, criou-se no seio da aldeia, entrelaçada nas tramas míticas que compõem o tecido da realidade tanto quanto os fatos, motivo pelo qual enxerga a realidade de uma maneira muito distinta de Baleiro, porém não menos fascinante.

As duas narrativas se interseccionam na medida em que Baleiro vai sendo estranhamente influenciado pelos aspectos tradicionais e míticos da visão de mundo da aldeia: naquelas circunstâncias e naquele contexto, a textura dos mitos, da magia e das histórias fabulares ganha uma solidez que desafia seu ceticismo. Quanto à Mariamar, o processo é quase inverso: a natureza mística da realidade continua existindo – seja por meio do espírito do avô, seja nas experiências transcendentais pelas quais passa -, mas ela vai revelando, pouco a pouco, seu aspecto social e historicamente condicionado, ou seja, sua factualidade. Desse modo, A confissão da leoa vai se encaminhando para o que parece ser seu ponto central – ou pelo menos nevrálgico -: a vida cotidiana das mulheres na aldeia Kulumani.

O título do livro não é A confissão da leoa à toa: trata-se da fêmea e não do célebre “rei dos animais”. Mia Couto dá voz às mulheres de Kulumani para contar a história de suas vidas de um ponto de vista não tão comum: o delas próprias. O autor faz isso com uma prosa sensível, que valoriza o potencial simbólico das cenas e da utilização dos personagens e das situações. Podemos aludir, por exemplo, ao sonho de Mariamar, no qual ela tenta fugir da aldeia – e da tirania masculina – por meio do rio, encontrando a leoa a beber na sua margem. A água se mancha de vermelho, sangue cuja procedência é propositalmente desconhecida: trata-se do sangue das vítimas da leoa que bebe ou da transformação de Mariamar em mulher? Ou ambas? A rica confluência de mitos, sonhos e realidade é o recurso de uma expressividade tão política quanto literária.

Não ignorando o passado de colonização portuguesa nem a influência católica na formação da cultura de Kulumani, Mia Couto nos conduz por um passeio pela realidade moçambicana, uma realidade misteriosa e fascinante, na qual a literatura encontra um fértil terreno para crescer, florescer e, quiçá, produzir frutos que não se restrinjam somente ao universo das letras.