Sendo este meu primeiro texto como contribuinte do Posfácio acredito que seja interessante apresentar-me antes de seguirmos às vias de fato. Meu nome é Gabriel Tonelo, 25, resido ao A do saudoso ABC paulista. Decidi dedicar o espaço que me foi dado ao assunto com o qual me ocupo academicamente há uns bons anos: Cinema Documentário (ou de não ficção, ou o termo que você quiser, isso realmente não importa muito), porém sem as correntes – de certa forma, necessárias – que o texto acadêmico requer. Tenho certeza que será uma experiência interessante falar sobre alguns tópicos livremente, sugerir filmes e expor alguns pontos de vista sobre especificidades do Documentário como forma cinematográfica autônoma.
No meu debut aqui no site falarei um pouco sobre um de meus temas preferidos no universo do Documentário: a autorreflexão direta do cineasta na narrativa documentária. Interesso-me por esse tema já há bastante tempo justamente por julgá-lo uma das mais belas especificidades da não ficção. Trata-se da narrativa documentária em que podemos, como espectadores, ver (ou escutar) a interação do cineasta – suas ideias, pensamentos, opiniões, reflexões ou até mesmo conhecer aspectos de sua vida privada – como uma ferramenta de construção narrativa. Esse fenômeno acontece em diferentes níveis e nuances (como veremos) e é possível observar o crescimento do número de narrativas documentárias que lidam com esse tipo de característica atualmente.
Essa possibilidade de uma autorreferência do cineasta dentro da narrativa documentária remonta ao início dos anos 1960, com o dogmático Crônica de um Verão (Chronique d’un Été, 1961), dirigido e idealizado pelos distintos monsieurs Jean Rouch e Edgar Morin. No filme, Rouch e Morin colocam-se a si próprios dentro da narrativa que está sendo criada e discutem a construção dela mesma, em um jogo de espelhos que anunciava tempos de mudança na relação entre o cineasta, seu objeto de filmagem e o próprio filme. Filmado no verão de Paris em 1960, Chronique d’un été é visto hoje como o fundador da uma metodologia aplicada ao Cinema Documentário denominada cinema-vérité, um modus operandi para a construção da narrativa que pressupõe a participação do cineasta no filme e sua interação com o objeto de filmagem.
Primeira parte de Chronique d’un été:
http://www.youtube.com/watch?v=s0vxSFnRl0Q
Essa relação, levada adiante a partir do projeto de Rouch e Morin, é trabalhada e renovada criativamente desde então. Já na década de 1970 surgem experiências documentárias em que o peso da balança diretor/objeto tende a recostar-se muito mais para o lado do primeiro do que para o do segundo. Em outras palavras, trata-se de filmes em que o universo particular do diretor (dramas pessoais, família, amigos próximos, pessoas ao redor, sexualidade) é, em si, o tema abordado – pelo próprio cineasta – nas narrativas. Cineastas como Edward Pincus (Diaries, 1980), Marlon Riggs (Tongues Untied, 1989), Jonathan Caouette (Tarnation, 2003), Chico Colvard (Family Affair, 2010), Alan Berliner (qualquer um de seus filmes), são alguns diretores que trabalham, ou chegaram a trabalhar, nesse sentido. Há, entretanto, todos os tipos de meios-termos nessa relação diretor/objeto dentro da narrativa não ficcional. Alguns representantes da rive gauche francesa, como Chris Marker e Agnès Varda, e também Jean-Luc Godard, são alguns diretores que trabalham a personificação do “Eu” na narrativa documentária de um modo bastante singular. Há diretores que se utilizam da voz própria, muitas vezes personificada, como importante ferramenta argumentativa de seus filmes mas não fazem dessa relação o mote dos filmes. Werner Herzog, em especial, é um desses diretores, em que suas reflexões (dominantemente através da característica de voz over) tornam-se indissociáveis para o fio narrativo.
O Homem Urso (Grizzly Man, 2005) e Encounters at the End of the World (2007) são dois documentários do diretor largamente reconhecidos em que esse fenômeno mostra-se bastante premente, apesar de Herzog ter desenvolvido essa característica durante toda a carreira.[1] É interessante notar que na bibliografia especializada surgiram diversos termos para categorizar as diferentes nuances relativas à interação direta do cineasta na narrativa documentária: “Documentário Interativo”, “Documentário Participativo”, “Documentário Performático”, “Documentário Autobiográfico”, a lista é enorme. Fala-se bastante, hoje em dia, do cruzamento entre a tradição literária do Ensaio (inaugurada por Michel de Montaigne, lá no século XVI) aplicado ao Cinema, o chamado Filme-Ensaio (Essay Film), uma quimera sobre a qual indico a leitura de “The Essay Film” (Timothy Corrigan, 2011), o último trabalho de peso sobre o tema.
Trailer de Tarnation, vencedor do prêmio de Melhor Documentário no Los Angeles Film Festival de 2004:
Aqui no Brasil, julgo (mas não sou só eu) que há três filmes que se sobressaem ao desenvolver uma relação interessante entre diretor, objeto e narrativa, cruzando esferas públicas e privadas, e que criaram ótimas narrativas. O primeiro é Um Passaporte Húngaro (Un Passeport Hongrois, 2001), uma investigação on-camera da diretora Sandra Kogut a respeito de sua ascendência húngara e sua tentativa em obter um passaporte do país; seguido por 33 (Kiko Goifman, 2002), em que o diretor lança-se em busca de seu pai biológico ao realizar 33 anos e, por último, o novo-clássico Santiago (João Moreira Salles, 2007), que dispensa maiores comentários.
Santiago, de João Moreira Salles:
http://www.youtube.com/watch?v=Zntngs6eR7w
De uma maneira mais branda, se comparada aos três filmes acima expostos, é possível dizer que a inserção ou autorreflexão do cineasta na narrativa documentária é algo que está bastante em voga na produção brasileira contemporânea. Digo isso por observar o fenômeno até mesmo em filmes com um objeto temático bastante demarcado. São os casos de Dzi Croquettes (Tatiana Issa e Raphael Alvarez, 2009) e Marighella (Isa Grinspum Ferraz, 2012). Apesar de terem como objetivo primeiro trazer à luz a trajetória e a importância de determinados personagens históricos brasileiros, existe uma argumentação direta diretor-espectador no sentido de que o primeiro lança mão, dentro da própria narrativa, de estabelecer-se como um “Eu” personificado. No caso dos Croquettes, ouvimos a voz da diretora logo no início do filme relatando suas lembranças do grupo com o qual pôde conviver de perto na sua infância, devido ao trabalho de seu pai no backstage dos espetáculos. Em Marighella, para além do retrato falado do guerrilheiro, existe da mesma forma uma argumentação em voz over pesonificada da diretora, sobrinha de Marighella, que relata sua convivência com o tio, exaltando aspectos de sua personalidade não-pública.
Devo voltar a esse tema no texto seguinte pois a ideia é expor um pouco sobre a obra de um diretor pouco conhecido aqui no Brasil, o estadunidense Ross McElwee. Os filmes de McElwee são frequentemente referenciados na leva dos “Documentários Autobiográficos” ou até mesmo no campo de difícil definição do Filme-Ensaio. Vejo a obra de McElwee como um dos mais importantes desdobramentos dessa característica que relatei aqui – os motivos explico no post seguinte – e é curioso o fato de que pouquíssimos de seus filmes foram exibidos no Brasil e pouco se escreveu sobre sua obra em terras brasileiras.
[1] Passei quase três anos da minha vida estudando especificamente essa característica na obra do Herzog. Caso alguém se interesse, eis o fruto do trabalho: http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000879671&opt=4
Parabéns pelo texto. Está muito fluído até para quem não é da área.
Será que autorreflexão pode ser observada também em cinema de ficção?
Abraço.
Caro Cabral, obrigado pelos elogios! Sobre autorreflexão em cinema de não-ficção, bem, é uma longa história… necessariamente, aqui, não trato de procedimentos de autoria inerentes à narrativa cinematográfica (enquadramentos, planos, montagem, etc) que possam remeter à figura do diretor (como subjetividade artística) mas, sim, em procedimentos diretos de transposição da persona do diretor à tela. Mas há, sim, alguns casos de filmes ficcionais em que a figura do diretor transparece – quase diretamente – na narrativa, mas são filmes que, em sua totalidade, estão vinculados a algum tipo de experimentalismo. Um caso desses é o “Duas ou três coisas que sei dela”, de Jean-Luc Godard. Vale a pena ver para entender o que estou falando. Um abraço e obrigado pela atenção!
Grande Tonelo,
A sua escrita é leve e clara, característica de quem domina o assunto sobre o qual escreve e não precisa recorrer a firulas.
Vejo que há alguns filmes na sua lista cujo objeto é uma história da própria vida do diretor e outros em que o diretor de fato se coloca como um aventureiro-descobridor do seu objeto, deixando de lado a mera exposição e transformando o documentário numa narrativa de descoberta – uma narrativa com personagem principal e, por consequência, com um lugar para a identificação do público. Acredito que isso fortalece muito as obras no sentido da sensibilização e aproximação do espectador. Isso se aplica inclusive quando estamos tratando de um Outro – a platéia ocidental precisa ver um ocidental na tela para se identificar.
Mas em nossos tempos pós-Declínio do Homem Público, como você vê esses cineastas escaparem do narcisismo vão que pandemiza nosso mundo? Vejo que eles conseguem, mas talvez você consiga me explicar como.
Abraço
“Isso se aplica inclusive quando estamos tratando de um Outro – a platéia ocidental precisa ver um ocidental na tela para se identificar.” -> Bom!!!
Caro Cartaxo!
Obrigado pelos elogios. Você também colocou ótimas reflexões. Concordo com o fato de que a transposição da figura do diretor à narrativa aproxima espectador e “criador” como indivíduos… cria uma sensação boa que muitas vezes a exposição exacerbada e a impessoalidade de uma narrativa não-ficcional ofsuca.
Da minha parte, acredito que os cineastas que lidam com esse tipo de autorreflexão escapam do narcisismo pelo fato de que eles são, ainda – dentro do universo cinematográfico -, uma exceção. Não sei, vejo que cada caso é um caso e que cada filme é um filme. Me sinto bem de ouvir as reflexões de caras como o Marker ou o Herzog na tela, mas isso porque são esses caras… para além do fato de existir um discurso direto diretor/espectador, é necessário se ater à argumentação em si – o teor do discurso desses cineastas – que faz com que o narcisismo possa ser driblado e que transpareça, mais, como humildade do que como uma necessidade de se impor. (Não sei se dá pra entender…). O que quero dizer é que o “José Silva” ou o “John Smith” , em seu primeiro filme, não deve achar que ele é o Chris Marker.
Ainda, de outra forma, acredito que muitos desses filmes são feitos de maneira mais independente do que documentários realizados como produto que já tem um destino certo, um público certo, uma máquina por trás, enfim. Muitos deles são realizados longe de uma lógica pré-estabelecida de pré-produção, produção e distribuição, fazendo com que haja mais tempo e mais liberdade para que o filme aproxime-se das intenções reais do diretor, aquilo que no âmago do seu ser ele desejou criar, ou mostrar. Assim sendo, mesmo que haja uma certa eloquência por parte do diretor (que chegue a ser ‘narcisismo’), de colocar-se como indivíduo cujas opiniões devem ser escutadas e refletidas sobre, acredito que um filme que recebe muito dinheiro para expor um determinado tema (e muitas vezes não passa disso, apenas expor, tornar um assunto visível sob a ótica da não-ficção, como produto), pode ser encarado como um arroubo de narcisismo muito maior.
(ou não)