O belíssimo Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, estrutura impressionante do francês Affonso Reidy (1909–1964) no início do Aterro do Flamengo, exibe de 17 de janeiro a 10 de março a exposição Adriana Varejão – Histórias às Margens, com curadoria de Adriano Pedrosa.

A mostra panorâmica da artista plástica brasileira nascida em 1964 traz quase quarenta obras, algumas feitas especialmente para o evento, com destaque para seus trabalhos em falsa-azulejaria.

Imbuída das artes do período colonial brasileiro, da arte sacra, do barroco e inspirada até pelos botequins da era de ouro carioca, o trabalho de Varejão é acima de tudo sobre o corpo. Em suas peças, os órgãos estão explicitamente expostos, extirpados, analisados e repetidos numa obsessão que de tão frenética, salta a tela ou perfura o quadro.

Em Mapa de Lopo Homem II (1992-2004), as vísceras da Terra nos encaram, cindida de norte a sul, precisamente a Greenwich, num formato quase vaginal (que se repete em outras obras) e o sangue brilha ainda novo. O planeta jaz na parede como um animal abatido, mas ainda pulsante. A mensagem aqui, contudo, não parece ambiental, mas sim sobre a natureza da existência e a vida presente em tudo. Corta-se a terra e a água do planeta e sob as camadas de vida temos o sangue. A obra, suja, respingada de vermelho, ainda é adornada por uma costura inútil, um remendo que evidentemente não resolverá o problema da carne exposta, da crueza da carne visível.

Mapa de Lopo Homem II
Mapa de Lopo Homem II

Amenizando um pouco o desconforto, partimos para Milagre dos Peixes (1991), onde começamos a adentrar em seu trabalho de falsa-azulejaria. Nesse quadro, o que parece azulejo na verdade é gesso e os adornos são simples pintura, na mais pura demonstração de habilidade técnica e artística.

Milagre dos Peixes
Milagre dos Peixes

Essa técnica, que se repete em várias outras obras, confunde os olhos e por vezes nos levam à genuflexão – especialmente em Língua com padrão sinuoso (1998) -, para que possamos ver a tela mais de perto ou de um ângulo novo.

Alguns trabalhos Inicialmente aparentam inspiração barroca das igrejas coloniais, mas subvertendo intenções, contudo, Adriana vai além, engana os olhos e angustia a alma com sua pintura fabulosa – como em Figura de Convite III (2005), talvez o trabalho que mais me impressionou, pelo simbolismo e pelo inegável autorretrato da artista (recorrente em sua obra) na cabeça decepada.

Figura de Convite III
Figura de Convite III

Voltando às vísceras (pois são elas que nos fazem tremer), a artista reconstrói a história com novos sentidos em telas, pratos e instalações. Reflexo de sonho no sonho de outro espelho (1998) nos leva a um cômodo onde espiamos por telas-espelhos o corpo estripado de Tiradentes, até perceber, com vertiginoso desconforto, que de acordo com os quadros, o corpo do mártir ocupa o mesmo espaço que o nosso dentro da cabine. Assim, através de sua magistral arte, Adriana faz dois corpos habitarem o mesmo espaço. Carne sobre carne.

Em Varal (1993), da série Proposta para uma catequese (1993-1998), Adriana expõe um homem em tripas, pés, pernas, mão, falo e… vejam essas marcas na mão, seriam chagas? Seria Jesus? Talvez. Mas como ter certeza diante de uma obra onde até os azulejos trincados são simples trucagem de pintura? Impossível certeza, com Adriana cabe apenas apreciação.

Apreciando, visitamos sua série Saunas e Banhos (2003-2009), um tipo diferente de pintura, ainda com a presença dos traços de azulejaria, mas com destaque a iluminação e, pelo menos desta vez, ausência total das carnes. Visitando seus Charques (2000-2004), temos de olhar para cima e para baixo: uns estão no chão, outros no alto das paredes do museu.

Seus Irezumis (1994-1997) são a escala mais dura da exposição, com obras cheias de misticismos e representações do mal caudaloso, como em Extirpação do mal por incisura (1994), que integra a vigorosa trilogia de extirpações do mal, junto a …por overdose (1994- não presente na mostra) e …por revulsão (1994).

Extirpação do mal por revulsão
Extirpação do mal por incisura

Passeando por suas estranhas-entranhas e vendo as cores pulsantes de suas vísceras, em certo momento começamos a nos acostumar com aquele universo tão exposto. Sua carne nos desperta um primitivo impulso antropofágico, suas telas perfuradas incitam nossos dedos para que provemos de seu sangue. Esse vigor faz da obra de Varejão algo místico, relacionado ao poder brutal e inequívoco da feminilidade, a própria força da mãe terra, da mãe natureza, da Mãe com maiúscula, que nos cria e nos mata, aquela a quem nós pertencemos.

Uma exposição cheia de surpresas, seja nas obras ou nos sentimentos que elas provocam. Grande realização de Adriana Varejão, que se firma como uma das mais influentes artistas das artes contemporâneas mundiais, e que volta ao Brasil que a inspira com todo seu vigoroso trabalho e inegável poder sobrenatural.

(Post dedicado a @NatalhaCarvalho , amiga fiel e grande artista em construção)