Modernidade. Um daqueles conceitos tentaculosos que se multiplicam e se repartem quanto mais os estudamos. O que se pode fazer com segurança, e apenas de maneira ainda vaga, é certa delimitação histórica, pode-se dizer que uma espécie de modernidade, aquela mais estudada, se manifestou em meados do século XIX. A partir daí, desconfiaria de qualquer um que pretendesse uma definição precisa. Charlatães. Os guias mais confiáveis são como Roberto Calasso em A Folie Baudelaire, eles expõem autores variados, exploram diversos meios, pintura, literatura, revelam pequenos artifícios, sugerem, insinuam e abrem espaço para que construamos nossa própria experiência.

Tive há algum tempo outro desses guias no Prof. Fabbrini [1], cujas aulas pude acompanhar durante um semestre, e das quais, se já não tivesse nenhuma outra lembrança, reteria ao menos estas três sílabas que ressoavam com frequência em classe: Bau-de-laire.
Importantes teóricos da cultura, como Walter Benjamin, foram buscar em Charles Baudelaire, o poeta decadente da Paris do século XIX, o marco para o desenvolvimento da modernidade. Lembrado hoje acima de tudo por As flores do mal, Baudelaire foi um dos primeiros a empregar o termo “modernité”, em um texto canônico dedicado a Constantin Guys, chamado “O Pintor da Vida Moderna”. Foram poucos os momentos em que Baudelaire se dedicou à “teoria do belo” – como comenta Calasso, seu propósito não seria tanto teorizar a modernidade, mas extrair sua essência –, ainda assim foram palavras iluminadoras quanto ao que viria em seguida:

O belo é constituído por um elemento eterno, invariável, cuja quantidade é excessivamente difícil de determinar, e de um elemento relativo, circunstancial, que será, se quisermos, sucessiva ou combinadamente, a época, a moda, a moral, a paixão. Sem esse segundo elemento, que é como o invólucro aprazível, palpitante, aperitivo do divino manjar, o primeiro elemento seria indigerível, inapreciável, não adaptado e não apropriado à natureza humana.[2][3]

Baudelaire se voltava assim contra os artistas de seu tempo que se deixavam absorver não apenas pelas técnicas dos grandes mestres – Rafael, Ticiano, Rubens – mas pela perspectiva própria do passado: seus móveis, suas indumentárias, seus padrões. Contra essa posição ele defendia uma visão sempre atualizada, a sensibilidade para o novo, para a “beleza de circunstância”. Deveria haver espaço, ele dizia, para se cultivar a “faculdade de se interessar intensamente pelas coisas, mesmo por aquelas que aparentemente se mostram as mais triviais”.

Vale observar que, paralelamente, a própria palavra “estilo”, comenta Calasso, sofre uma mudança completa de sentido a partir do século XIX. Se até então fora empregada para designar algo como uma capacidade universal de composição, ou uma tentativa de alcançar um padrão absoluto e irretocável, hoje ela serve de sinônimo para o que há de particular e inimitável em cada artista. Para o nosso tempo, dominado pela inovação e o instantâneo, Baudelaire soa familiar.

Faz todo sentido, portanto, que Calasso tenha escolhido Baudelaire como o centro de sua obra. Nas palavras de Sainte-Beuve, importante escritor e crítico daquele período:

M. Baudelaire encontrou um modo de construir, na extremidade de uma língua de terra considerada inabitável e situada além dos limites do romantismo conhecido, um quiosque extravagante, bastante ornamentado, bastante atormentado, mas sedutor e misterioso, onde se leem livros de Edgar Allan Poe, onde se recitam sonetos excelentes, onde as pessoas se inebriam com haxixe para depois discorrer a respeito, onde se consomem ópio e mil drogas abomináveis em xícaras de finíssima porcelana. Esse quiosque singular, feito em marchetaria, de uma originalidade concertada e compósita, o qual, faz algum tempo, atrai os olhares para a ponta extrema de Kamchatka romântica, eu o chamo de a folie Baudelaire. [4]

A Folie Baudelaire, portanto, não se dedica exclusivamente à figura do poeta, mas de tudo que se desenrolava ao seu redor, naquela “ponta extrema de Kamchatka”. Calasso se dedica alternadamente a apresentar diversos nomes que poderiam ter passado por aquela folie [5]. São inumeráveis os artistas citados ao longo da obra, que se estendem por aproximadamente um século entre Chateaubriand e Proust, mas concentram a maior parte da discussão os pintores Delacroix, Ingres, Degas e Manet, o gravurista Guys e os escritores Sainte-Beuve e Rimbaud.

Os recursos empregados por Calasso também são variados. Suas discussões se apoiam sobretudo no fio biográfico, mas incorporam, por exemplo, análises de pinturas e de poesias, teorias sobre a arte e a cultura, e comentários quanto a transformações históricas relevantes, como o surgimento da fotografia e da publicidade nos jornais.

Merece especial consideração o capítulo central do livro, chamado “O lábil sentimento da modernidade”. É nele que o estilo de Calasso, feito de um entrelaçamento entre história e crítica, se realiza de forma mais orgânica. O texto se inicia com a apresentação de algumas gravuras de Guys, com as quais Calasso procura esclarecer a visão de “O pintor da vida moderna”. Em seguida o foco se desloca para Degas, mostrando o percurso de suas obras sob a constante fascinação pelas formas femininas, um sentimento “no qual a atração se equilibrava ocultamente com a repulsa, até chegar a um inacessível ponto de indiferença”. Finalmente, completa o capítulo um comentário sobre a produção de Manet, acompanhada de explicações sobre a relação entre o pintor e algumas de suas modelos mais frequentes. São três percursos diferentes, fartamente ilustrados, que seguem quase paralelamente pela Paris de meados séc. XIX, reflexos distintos da sutil noção de modernidade.

O capítulo “Kamchaka”, último do livro, apresenta também uma interessante, embora não tão equilibrada, congregação de diferentes perspectivas sobre o papel do escritor, para a qual colaboram nomes como Sainte-Beuve, Anatole France, Proust e Nietzsche. Insere-se também nessa parte uma análise das características da produção de Baudelaire, feita a partir dos comentários de Laforgue e Bourget, da qual o poeta emerge como uma peça essencial na transição entre romantismo e modernismo, como o “triunfo do idiossincrático”.

Talvez o caráter fragmentário do livro possa afastar alguns leitores, mas certamente agradará aos interessados pelo legado de Baudelaire ou pela história da arte em geral, e que estiverem dispostos a se deixar levar pelo ritmo de Calasso. Boa parte da dificuldade da matéria pertence à própria natureza “bastante atormentada” da folie Baudelaire, que se inscreve na história como o início da turbulência que deixaria as certezas clássicas para mergulhar definitivamente no caminho das vanguardas, de maneira que o livro de Calasso, se se depara com a impossibilidade de uma retificação do trajeto, estende ao leitor ao menos alguns pontos de observação privilegiados.

[1] Para quem costuma circular pela USP, vale a pena se esgueirar para dentro de uma das classes de Estética do Prof. Ricardo Fabbrini… se ainda houver carteiras vagas.
[2] Baudelaire, “O Pintor da Vida Moderna” in A Modernidade de Baudelaire, org. Teixeira Coelho, trad. Suely Cassal, Ed. Paz e Terra, p. 162.
[3] Imagino se não seria essa distinção que Drummond tinha em mente quando escreveu: “E como ficou chato ser moderno. Agora serei eterno.”
[4] Do capítulo “Kamchatka” de A Folie Baudelaire, p. 314.
[5] “Folie” nesse caso é um termo de díficil tradução, que sugere tanto o sentido de “loucura” (como em “c’est un fou”) quanto de um gênero de habitação exuberante, geralmente afastado do centro, e que acabou adquirindo conotações de local próprio à libertinagem.