Precursor do Cinema Novo com Rio 40 Graus (1955), diretor de Vida Secas (1963), Tenda dos Milagres (1977), Jubiabá (1986) e tantas outras obras capturadas diretamente da melhor literatura brasileira, o hoje octogenário Nelson Pereira dos Santos é o exemplo mais próximo do que podemos chamar de “lenda vida”.

Para o bem do bom Cinema, Nelson ainda consegue manter-se ativo e nos últimos dois anos dedicou-se à construção de uma belíssima ode ao compositor brasileiro Antônio Carlos Jobim.

Com A Música Segundo Tom Jobim, construiu um recorte cheio de som e brasilidade sobre a universalidade das composições de Tom, justapondo as adaptações de suas peças nos mais diversos cantos do mundo, cavando sua discografia de forma algo linear e ousando ao abandonar completamente dados visuais ou narrativas explicativas. Nesse filme tudo deve ser sentido, ouvido com atenção e interiorizado através de sentimentos provocados pela obra do maestro que mais perfeitamente capturou a essência carioca.

Entre os recortes, vemos interpretações históricas, como Ella Fitzgerald com Desafinado e Judy Garland com Insensatez; relembramos artistas de nosso país, como Elizabeth Cardoso em Eu Não Existo Sem Você, Silvinha Telles em Samba de Uma Nota Só, Nara Leão em Dindi e Agostinho dos Santos em A Felicidade; além das inesquecíveis parcerias de Tom com Vinícius de Moraes, Elis Regina, Chico Buarque e Frank Sinatra.

Para os mais novos, como eu, o documentário serve como tutorial sobre uma parte da história da música brasileira, para entendermos como esse boêmio tijucano tornou-se um dos compositores mais aclamados do mundo, cuja música ultrapassou fronteiras e reverberou das formas mais diversas, de sinfonia da orquestra de Viena a música de elevador de hotéis em Dubai ou trilha sonora de Duro de Matar.

Para aqueles que viveram à época de Tom, e os mais sortudos que puderam ver ouvir e aplaudir o músico, o prazer está em se surpreender com as versões internacionais mais esquisitas, como as adaptações francesa (por Stacey Kent) e alemã (por Birgit Brüel) de Águas de Março, a italiana de Garota de Ipanema (La Ragazza de Ipanema, por Mina), ou a graciosa Diana Krall tentando cantar Esse Seu Olhar em português.

Mas o filme também serve para dessacralizar a figura de Tom, que vez ou outra aparece brincando com suas canções de um jeito descomprometido, preguiçoso e errado, como faz com a intocável Garota de Ipanema – uma heresia! O intuito, contudo, é fazer de Tom algo mais palpável, e aqui entra o segundo filme de Nelson sobre ele.

Em A Luz do Tom, recentemente lançado e ainda em cartaz em alguns cinemas, deixamos a música por completo e mergulhamos na biografia do compositor, através do relato de três mulheres importantes de sua vida: a irmã Helena Jobim, autora do livro ‘Antônio Carlos Jobim: um Homem Iluminado’  em que o filme se baseia; Tereza Hermanny, sua primeira mulher e Ana Beatriz, sua segunda mulher.

Menos impactante que o primeiro filme, esse novo documentário serve como um complemento, um adento, quase como extras de A Música…. A imagem de Tom quase não aparece, exceto em fotos, algumas tiradas por Ana Beatriz, que é fotógrafa e com o marido lançou o belo ‘Tom e Ana – Ensaio Poético’.

O melhor momento do filme está nos relatos de Tereza, senhora altiva que raramente concede entrevistas (mas declinaria convite do grande Nelson?), que repassa adoráveis momentos, como quando Sinatra ligou em busca de Tom e ela lhe passou o telefone do Bar Caetano (hoje Garota de Ipanema, na rua Vinícius de Moares, em Ipanema), onde ele estava, e sobre como Tom compôs a impactante melodia de Águas de Março, durante um descanso na composição da odisseia Matita Perê.

Dentre os relatos sobre um Tom menino, contados pela irmã, até sua fissura por urubus, contado por Ana, a que mais me emocionou foi uma passagem relembrada por Tereza sobre o primeiro contato do artista com um piano, quando ficou com a mão suspensa sobre as teclas, sem tocá-las, em puro êxtase. Aquele foi o começo de importante período de nossa história musical.

Nelson encanta com ambos os filmes, seja pelo incrível trabalho de compilação e pesquisa do primeiro ou pelo tom intimista, conversa de bar só para interessados, do segundo, ambos nos aproximam de Tom e nos fazem sentir um pouco mais desse gênio que não pode ser esquecido.

De forma curiosa, assina ainda mais forte seu nome dentre os grandes diretores do Cinema nacional, e também reforça a necessidade de se preservar e revisitar sua filmografia e não nos esquecermos dele.

Dois grandes artistas que na tela se juntam, metafisicamente, de uma forma maravilhosa: A Música Segundo Tom Jobim e A Luz do Tom é bom Cinema brasileiro, coroado pelo melhor de nossa invejável música.

Nelson: 85 anos de Cinema
Nelson: 85 anos de Cinema