James Joyce, autor de algumas das obras mais aclamadas da literatura ocidental, gostava de dizer que não inventava nada de seus romances e contos, já que tudo vinha de sua própria vida. Ao dizer isso, queria dizer que todos os eventos e as personagens em seus enredos eram paralelos ficcionais da realidade que ele viveu, transformando de imediato sua obra em quase uma autobiografia. É claro que se trata de um exagero da parte de Joyce. A princípio, todos os escritores se baseiam em suas experiências para a elaboração de suas narrativas em menor ou maior escala.

No caso do autor irlandês, essa presença da realidade na ficção talvez fique mais evidente porque ele não tinha receio em dar nome aos bois: poderia ser muito óbvio para um leitor dublinense de sua época que uma personagem era baseada em uma pessoa de suas relações. Sobre os romances do escritor italiano Giorgio Bassani (1916-2000), diz-se que essa mesma impressão poderia nos ocorrer se tivéssemos vivido em Ferrara, pequena cidade da região de Emilia-Romagna, entre 1920 e 1940. Bassani lá cresceu e sabia bem como as famílias judias passaram pelo conturbado período do governo fascista de Benito Mussolini. Daí vem boa parte da matéria de sua ficção.

Em Óculos de ouro (Gli occhiali d’oro), de 1958, um dos primeiros romances de Bassani, temos claramente um enredo exemplar da afirmação dada acima. Seu romance anterior, Una città di pianura (1940), também já apresenta essas mesmas características, mas aparentemente de modo mais suave, já que a Itália ainda se encontrava dominada pelo Fascismo sob as leis raciais, em que escritores como Bassani, judeu, não poderiam se pronunciar contra o regime. Ainda assim, a dor de se viver sob essas condições já estava exposta. Já na obra da qual trato aqui, a questão judaica é posta de maneira mais incisiva, mostrando as contradições políticas do cotidiano no país à época de Mussolini. A partir dela, todo o resto do ciclo ferrarense, chamado Il romanzo di Ferrara, tratará desses problemas, como em O jardim dos Finzi-Contini (Il giardino dei Finzi-Contini), de 1962.

Por uma narrativa em primeira pessoa, o enredo de Óculos de ouro se constrói aos poucos, inicialmente sem mostrar ao que veio. Não se pode dizer, acredito eu, que o romance de Bassani se caracteriza por uma exploração formal de vanguarda como em outras obras da Europa pós-guerra. Ainda assim, o que se nota é que o narrador, que reflete a vivência do autor na cidade, tenta construir um mundo fora de si, fora de seu âmbito de conhecimento. Digo isso porque o real “motor” do enredo a princípio não é a questão judaica, que se torna uma questão por consequência, mas sim o surgimento de um elemento estranho em Ferrara: o doutor Athos Fadigati. Ele é quem possui os “óculos de ouro”, que funcionam como símbolo de conhecimento e riqueza ao mesmo tempo.

No meio da cidade pequena, um médico vindo de Veneza estabelece seu consultório e se mostra muito amigável, porém resta a dúvida sobre suas reais intenções ali. Além disso, também não se sabe sobre seu passado e sua vida íntima. Na Ferrara de Bassani, tudo é esclarecido: todos conhecem a rotina de todos. O narrador é um estudante que todo dia viaja de trem para Bolonha com os amigos para se preparar para os exames de final de colégio. Percebe que todas as gerações, inclusive a sua, se sentem incomodadas pelos segredos da vida de Fadigati. Apenas sabem que ele procura ser reservado pela noite, após o trabalho. Após certo tempo, as especulações feitas de indícios vários chegam a uma conclusão clara, porém não comprovável: Fadigati é homossexual.

Nesse momento, o narrador-personagem percebe como todos imediatamente mudam sua opinião a respeito do médico. De senhor respeitável, educado e sofisticado, passa a ser alguém de reputação duvidosa a quem se deve evitar. Ao mesmo tempo, as tensões sociais crescem conforme o regime fascista estabelece novas normas e relações com a Alemanha hitlerista. Quem não tem a carteirinha do Fascio, o partido de Mussolini, imediatamente passa a ser segregado por membros da alta burguesia ferrarense. Com a campanha na impressa contra os “israelistas”, por influência alemã, tudo começa a ficar instável no terreno das famílias judias, inclusive a do narrador-personagem, esse “eu” nunca nomeado.

Em meio a isso tudo, a família judia do narrador e os Lavezzoli, pró-fascistas, resolvem passar férias em Riccione, balneário próximo no Mar Adriático. Em vez da leveza esperada das férias, o que acontece é o estremecimento das relações da família do narrador com os Lavezzoli, que sentem cada vez mais necessidade de se afastar dos amigos judeus e do médico homossexual. A discriminação e a segregação já começam a acontecer antes mesmo da promulgação das chamadas “leis raciais” por Mussolini. Todas as famílias judias de Ferrara se veem em um cenário de incertezas diante da possibilidade (que se concretizaria no plano histórico) de efetivação dessas leis, não importando sua classe social, o que inclui os reclusos e requintados Finzi-Contini, que já se encontram aqui, mas têm sua narrativa elaborada somente no romance seguinte de Bassani.

Durante essa ascensão do antissemitismo entre os italianos, fica mais clara a relação de Fadigati com Deliliers, um jovem estudante conhecido do narrador. Trata-se de uma estranha relação no meio da narrativa, em que se nota como o médico, mais velho, se dedica escusamente a venerar seu jovem amante e mantê-lo a todo custo perto de si. Aos poucos esse esforço se torna evidente e a “decadência moral” do médico perante a sociedade se consolida, levando-o a um final agonizante. Essa caracterização do doutor Fadigati como velho erudito apaixonado por um jovem às escusas em um balneário burguês me parece por demais semelhante à figura de Gustav von Aschenbach em Morte em Veneza (1912), de Thomas Mann.

Sinceramente, não sei se essa associação com Mann indica uma referência comprovável de Bassani na escrita de seu romance, porém a comparação ainda assim pode ocorrer. Em Óculos de ouro parece ser essencial a exploração sutil e objetiva do autor em relação à repressão das minorias pela massa liderada por um poder maior. Os membros das famílias judias de Ferrara não se viam como diferentes por ser judeus até o momento em que foram acusados disso. Indignado com essa repressão, o narrador-personagem sugere a Fadigati que tomem uma providência, que ambos façam algo a respeito, porém o médico ri e diz que “não é possível” no seu caso. Ferrara aparece com toda a moral da sociedade burguesa da Itália do início do século, em um período em que o autoritarismo nacionalista mobiliza massas para agir com uma violência não imaginada pelo jovem narrador, mas evidente desde sempre para aquele que sempre foi marginalizado.