Acredito que a primeira reação do leitor é pensar que Paul Auster (1947) é romancista, não poeta, dúvida essa que não surge sem fundamento. Realmente, ele hoje se dedica à prosa, posição essa que lhe consagrou todo seu sucesso literário da década de 80 para cá, porém antes disso, desde 1970, sua principal ocupação era a de poeta e tradutor de poesia. Com o objetivo de recuperar sua produção poética de ótima qualidade, lançaram-se há poucos anos os Collected poems, coletânea essa que hoje temos traduzida por Caetano Galindo e publicada em edição bilíngue como Todos os poemas pela Companhia das Letras, com um prefácio de Norman Finkelstein. Em relação à edição americana, esse lançamento no Brasil só não contém as traduções de Auster de poetas franceses como Paul Éluard e Stéphane Mallarmé. Imagino que essa ausência se deva a uma escolha do tradutor ou da editora de não retraduzir a tradução do autor americano, o que não faria sentido algum.

Mesmo para se compreender o romance de Auster, acredito ser essencial entender sua poesia também. Ela está diretamente relacionada a diversas questões que o autor aborda em suas criações posteriores e, em certa medida, pode dar uma noção de suas origens. Auster estudou Letras em um período muito específico, durante a ascensão do pós-estruturalismo nas ciências humanas, o que, de certo modo, repercute em seu pensamento sobre poesia. Em especial em seus primeiros poemas, a figuração do objeto, a presença do concreto em oposição ao abstrato traz consigo muitas reflexões sobre a simbologia e a nossa imposição de sentido ao mundo.

O principal elemento figurativo nos poemas de Auster é a pedra, que sempre é referenciada ao se falar de seus textos. Essas pedras estão por toda sua poesia, trazendo peso e dificuldade para se lidar com elas. Sente-se sua frieza, sua utilização como instrumento de lapidação dos versos, sempre curtos, mínimos. Não se trata de uma poesia prolixa ou narrativa, cheia de ornamentos. Auster impõe a pedra como matéria e se concentra nela e no significado que pode lhe atribuir. Nesses momentos, para o leitor brasileiro, como ressaltado por Caetano Galindo em sua introdução, a imagem imediata para comparação deve ser João Cabral de Mello Neto. Apesar das semelhanças, acredito que a derivação de Auster é completamente outra. Acredito que ele duvida mais de nossa percepção dos objetos.

Aí entram a luz, o corpo, a natureza. A dureza que a rocha nos apresenta sendo difícil transpô-la parece se tornar mais evidente, porém compreensível de algum modo, quando a luz passa pelos dedos, bate na árvore, ilumina a pedra. Em “Lackawanna”, parece que o mundo quer nos penetrar, nos dar novo significado para que não o signifiquemos.

Trilhos-seixos, ferrugem,
memória: o já insuportável, de novo,
manobrando em
tua terra de metal-fuzil. O olho
não deseja
o que o penetra: deve sempre negar-se
a negar.

Na geada que brota
do equinócio: terás teu nome,
e nada mais. Reduzido
ao rubro espaço-semente
em que cada teu ato
te refuta, teu férvido poro, claro-de-imagens,
de novo
vai forçar passagem e
se abrir.

A todo tempo, Auster parece como que um investigador do mundo e de suas possibilidades de representação diante do fato de que também fazemos parte do mundo. Não há luz que não nos lembre de um momento da infância. Assumir a ausência de definição, a falta de estabilidade da referência foi um processo na formação do Auster artista, uma “peregrinação” como em “Viático”:

Não culparás as pedras,
nem te verás
além das pedras, por dizer
que não esperaste por elas
antes que teu rosto
fosse pedra.
Diante de ti
e atrás, no escuro
que se move com o dia, terás
quase respirado. E teus olhos,
como se tua vida fosse nada mais
que amarga peregrinação
a este país de falta, vão se abrir
para os muros
que te trancam a voz,
tua outra voz, levando-te
às distâncias do amor,
onde restarás, mais perto
do segundo,
e mais claro, terror
de viver em tua morte, e dizendo
a pedra
em que te tornarás.

 

Não quero aqui limitar de modo algum a poesia de Auster a um percurso transtornado entre pedras. Seu processo de reconhecimento do mundo e de seus meios de percepção ao longo da década de 1970 pela poesia é único e merece uma leitura atenta. Meu objetivo aqui é apenas a apresentação desse lado que muitos não conhecem do autor, que termina mesmo em Todos os poemas na prosa, aqui ainda a prosa poética que já se precipita para seus romances posteriores. Na última seção, “Anotações de um caderno de rascunhos”, diz-se: “O mundo está em minha cabeça. Meu corpo está no mundo.” Uma surpreendente síntese final da formação do jovem Paul Auster.