Começar uma história é fácil perto da habilidade necessária para finalizá-la com sucesso e precisão. Há o mísero detalhe da existência de histórias que merecem ser contadas e outras que merecem ser esquecidas – tanto por conta de seus conteúdos enterrados no passado quanto por estarem incompletas, ou, por vezes, esquecidas, como já explorado em O Sentido de um Fim, de Julian Barnes.

A velocidade da luz, do espanhol Javier Cercas, traz em suas 248 páginas os dilemas de um escritor sobre ficcionar ou não um relato que o persegue e assombra por quase toda a carreira. Saído da pequena Girona para lecionar espanhol em Urbana, próxima a Chicago, ele (nunca nomeado) narra a peculiar amizade com Rodney Falk, veterano de guerra com um intelecto invejável; e sua trajetória, do ostracismo ao sucesso e ao fundo do poço.

Como fez em trabalhos anteriores – Soldados de Salamina, sobre a Guerra Civil Espanhola, e A anatomia de um instante, sobre a redemocratização da Espanha pós-franquista – Cercas aborda um evento histórico nesta obra: a Guerra do Vietnã. Mas não é um relato de batalhas ou uma investigação de guerra, e sim uma história entrecortada, interrompida e camuflada. A participação de Rodney Falk, ex-combatente e depois um fantasma no seu retorno ao país, é o fio condutor desta história. Javier Cercas tange a ficção com a realidade, entre o contar, escutar e calar, e sobre o processo de escrita e as obsessões que desperta ao longo da vida. Não se trata de um devaneio sobre a arte de escrever mas sobre o que e como deve ser contada uma história.

Muitas vezes, digressões cortam o fluxo de consciência que guiam as lembranças para apontar os seus pontos de vista, suas dúvidas e deduções. Dessa forma, a construção da narrativa de A velocidade da luz nada mais é que a do próprio livro que o narrador tanto busca. Assim o leitor acompanha a construção gradativa daquela que será a história de Rodney Falk, nada de livro dentro de livro – lemos a obra do narrador.

Seria bobagem afirmar que este livro trata apenas da história de Rodney Falk, mas não é errado ponderar como esse personagem está intrincado em diversos momentos do livro. No passado, em Urbana, ele participa quase como um guru e um conselheiro, suas palavras ecoam por toda a carreira do narrador. É ele quem explica como o sucesso e o fracasso refletem na carreira de escritores como Hemingway, enquanto esmiúça o papel da literatura na vida de cada um deles, trazendo uma analogia genial sobre a visão aguçada dos autores para desvendar as verdades do mundo que os cerca.

Em meio à criação da narrativa do personagem-narrador há a hesitação em ficcionar a vida de Rodney. No entanto, o escritor busca um perfeccionismo verossímil para um relato que seria, tal como ele deixa evidente, mais uma ficção com toques autobiográficos e também históricos. O jogo de narrativa proposto e explorado por Cercas é eficiente e certeiro. Seu narrador é inexperiente como escritor, apesar de ter absoluta certeza de ser um gênio, até de fato começar a exercer a profissão. Os livros dele captam as pessoas que passaram por sua vida, mas as descrições são contraditórias, porque o narrador não é o criador delas, não são personagens fictícios; existem, transformam-se, desaparecem, têm segredos, mudam de aparência e envelhecem.

A maior prova do talento de narrador de Javier Cercas fica reservada a seu personagem principal, o narrador. Ele não é um ser totalmente bom ou ruim, tal qual a premonição de Rodney Falk previra caso ele alcançasse o sucesso. É uma pessoa boa que comete erros primários, elabora teorias furadas, rejeita e desrepeita algumas pessoas e sente remorso, muito remorso. É impossível para o leitor defender ou rejeitar esse narrador de A velocidade da luz, ele não é absoluto, é mais próximo de qualquer humano.

Essa obra, relançada agora, veio para reafirmar o que há anos já era de conhecimento dos leitores: Javier Cercas é um escritor ímpar com talento para cadenciar um texto na linha tênue do real e da ficção. E para isso cria personagens tão reais, cativantes e peculiares que é quase possível esbarrar com eles por aí.