Um susto foi o que me acometeu quando recebi uma cópia de Do que a gente fala quando fala de Anne Frank. O título aparenta muito mais uma autoajuda ou aqueles guias como “Decifrando o Código DaVinci” e “O Segredo por trás de O Segredo”. De duvidoso mesmo, só o caráter de seus personagens e o humor – daqueles que não sabemos se é puramente cruel ou hilário por retratar a irredutível realidade. Nathan Englander, professor de escrita criativa nos EUA, traz nessa coletânea de contos o lado perverso do que podemos chamar de humor judaico, pegando para Cristo (risos) os ortodoxos, os seculares, as tradições, as manias, a instituição familiar, a educação e até o Holocausto.

Só para situar como funciona mais ou menos esse humor duvidoso, vejamos o conto que dá nome à coletânea e abre o volume: “Do que a gente fala quando fala de Anne Frank” mostra duas famílias, uma formada por Debbie, seu filho e seu marido, todos de origem judaica mas não praticante; e outra formada por um casal morador de Israel e ultraortoxo, chamados Mark e Lauren – e ultraortodoxicamente rebatizados de Shoshana e Yerucham. O embate entre as duas realidades, quando o segundo casal visita Debbie e sua família em Miami, é o pilar que sustenta a narrativa.

Debbie e Lauren são amigas de infância e têm grandes histórias, mas o presente parece ter mudado tudo isso. A diferença cultural entre as duas, mesmo após anos de amizade e infrações, é um abismo gigante. No outro lado, o marido de Debbie caçoa mentalmente dos dois. Como boa parte dos casais, e de histórias sobre casais, as rupturas e rusgas são um foco intenso de análise, e nesse conto não seria diferente. Porém, a piada final é conduzida pelo jogo “Do que a gente fala quando de Anne Frank” – em que o único objetivo é escolher uma pessoa e dizer se ela esconderia ou não judeus. Essa brincadeira inocente ganha ares de desconfiança por parte dos personagens e serve como uma grande cutucada na ferida do machismo e judaísmo.

Englander inverte cenários e papéis para mostrar a crueldade infantil em “Como Vingamos os Blums”. Quando um grupo de jovens russos-judaicos é vítima de um garoto apelidado de O Antissemita, que promove hostilidades, os espanca, joga pedras em suas casas e até agride suas mães, um refugiado russo decide treiná-los para enfrentar o valentão. Seria apenas uma história sobre preconceito, intolerância e opressão, não fosse o perverso voyeurismo dos meninos. Após todos os seus planos para liquidá-lo falharem, o grupo dos injustiçados e covardes se delicia, talvez atônito, talvez com um gosto doce na boca, ao ver O Antissemita se retorcer de dor.

Assim como eu tomei um susto inicial com o título do livro, alguns leitores terão uma sensação semelhante, uma certa estranheza ao ler contos carregados com expressões judaicas. Afora as menções à superproteção da mãe judia e a termos encontrados no dia a dia – como gói, bar mitzvah, etc. –, Do que a gente fala quando fala de Anne Frank é recheado de piadas internas como em Um Homem Sério, dos irmãos Cohen. Acredito que o filme de Ethan e Joel Cohen é bem engraçado, mas tem um gosto muito melhor quando há mais conhecimento sobre a cultura judaica. O livro abusa de referências mais obscuras e é preciso, quem sabe, pesquisar um pouco sobre o assunto. O humor descarado está em toda parte, mas o conjunto como um todo oferece bem mais em suas entrelinhas, como no conto “Tudo o que sei sobre o lado materno da minha família”.

Aliás, “Tudo o que sei sobre o lado materno da minha família” lembra muito, em questões de estrutura, o Diário da Queda, do brasileiro Michel Laub. O conto é dividido em itens e conta a história de um escritor, seu amor por uma bósnia e as tragédias e maldições que assombram sua família. Como o livro de Laub, a estrutura pode aparentar apenas uma sacada esperta para intercalar momentos, mas a forma como é montado, e como deixa ganchos, com ou sem solução posteriores, prende a atenção do leitor para levá-lo até o fim em um turbilhão de informações.

Por outro lado, “Colinas Irmãs” evoca um pouco de Amós Oz, pelo tom de fábula misturado com a realidade do Estado de Israel, aos olhos de um pequeno vilarejo em crescimento à beira da fronteira. Um julgamento para tratar uma antiga dívida entre as duas fundadoras da cidadela se transforma em uma contradição de valores religiosos e civis. Como cultura, o judaísmo oferece muito para o mundo, mas é no caráter religioso que Nathan Englander molda e transforma o humor negro e ácido em uma ironia lacônica e melancólica, quase incurável. Se há perversidade em julgar os ultraortodoxos diretamente, o livro ganha propoções maiores quando coloca em xeque a fé versus os direitos civis e se desdobra em grandes críticas, em momentos tocantes e até revoltantes.

Dois contos merecem um pouco mais de destaque por causa do contexto cruel pós-holocausto: “Campo do Pôr do Sol” e “Frutas de graça para jovens viúvas”. Não que o tema não apareça de forma recorrente, em maior ou menor escala, nos demais contos do livro. Estes dois, no entanto, têm o mérito de explorar os valores de quem esteve em campos de concentração, sobreviveu e precisou se readaptar ao mundo. “Frutas de graça para jovens viúvas” remete de leve a Sem Destino, do húngaro Imre Kertész, tratando o medo e a angústia de um jovem judeu ao ser libertado de um campo de concentração. Ele precisa se alimentar e retornar ao seu lar vazio, readequar-se a um mundo que lhe escapa das mãos e da comprensão. Em “Campo do Pôr do Sol” há o sentimento de vingança de um grupo de idosos judeus que afirma estar no mesmo campo de repouso que um ex-nazista. A ética bate de frente com o senso de justiça, ou a lei do perdão, e a vendeta do grupo parece um delírio coletivo prestes a implodir numa retaliação.

Nathan Englander conduz os contos com primor e exibe um talento fascinante em prender o leitor com diferentes narrativas, que flutuam entre o triste, o hilário e o belo. Do que a gente fala quando fala de Anne Frank não tem como atrativo detratar o judaísmo, e sim mostrar de maneira corajosa as contradições que essa – e qualquer outra religião – pode ter, sem perder a jocosidade essencial de fazer rir e refletir.