Marcelo Backes é escritor e tradutor brasileiro nascido em Campina das Missões (RS), em 1973. Em sua obra, destacam-se os romancesmaisquememória (2007) e Três traidores e uns outros (2010). Doutor em germanística e romanística pela Universidade de Friburgo, Backes verteu ao português obras de Arthur Schnitzler, Franz Kafka, Hermann Broch e outros. O último minuto é o seu terceiro romance, primeiro lançado pela Companhia das Letras.

Preso por um crime que só é revelado ao final, João, em sua solitária cela de prisão, decide relatar a história de sua vida a um missionário. Ao tentar dar conta de sua própria biografia, João, nascido Yannick, alternará passado e presente e se perderá em inúmeras digressões, fugindo do assunto central e embarcando em longos discursos sobre o futebol para não encarar a realidade de seu crime.

Leia agora um trecho exclusivo:

“Eu chegava, me abancava e ouvia, ouvido aguçado, caneta e papel na mão.

Desde criança, quando ainda chutava os rastros de trator marcados na secura do barro, ele sempre quisera ver o universo bem longe, por trás das montanhas que cercavam o lugarejo em que nasceu. Nos momentos em que a fantasia dava à realidade sua maior beleza, ele sonhava com a imensidão do mundo ao olhar pro céu refletido numa poça d’água, ao alcance de seus pés. E tinha de se conter pra não atender à vertigem e mergulhar no abismo, atingindo apenas a desilusão de sujar as calças no barro de terra vermelha, pra ouvir a mãe xingando depois, ou até apanhar do pai, que era sempre o responsável pelo serviço sórdido. Era assim, a vida. O infinito, ao ser tocado, não passava de uma poça de água suja.

O pai, o velho Vassili, quase nunca estava em casa, ocupado na lida da roça, sempre acompanhado do fiel Carmo, de modo que ele, o guri, quase sempre, um quase sempre que dependia diretamente do quase nunca do pai, acabava se escapando das listras vermelhas da vara nas pernas e nas costas, pois no lugar de onde ele vinha era assim que se fazia, assim que era certo e ninguém estranhava. A mãe, dona Maria, Maria Nasyniack, Weber de nascimento, se limitava ao latim de chamá‑lo de Sujismundo, ele dizia, enquanto tocava o canto do olho ao se lembrar, e eu mantinha no rosto a expressão incrédula que esboçara já ao ouvir das listras da vara, e que ele censurava com cara de vai catar coquinhos, seu citadino fresco.

Uma vez que a realidade não lhe permitia grandes viagens, ele só conhecera a argentina Oberá, do outro lado do rio do seu nascimento, o Uruguai que banhou sua infância, conforme ele dizia. E fora incrível, aqueles fuscas esquisitos, maiores, fuscas argentinos, como se dizia, gaietas, quantas gaietas, g, a, l, l, e, t, a, s, é assim que se escreve, ele corrigiu, professoral, ao me ver assinalando um ponto num “i” que não havia, estradas asfaltadas, bem asfaltadas, umas compras gigantescas de supermercado, valia a pena, coisas que ele nunca comera, galletas deliciosas, quase tão boas quanto os pirochkis da avó paterna que ele aliás podia comer só de vez em quando devido à grande pendenga familiar, ainda falaria disso, um mundo com um punhado de coisas diferentes, incrível, uma moita inteira a revirar pra ver o que havia dentro. Mas como aquela fora a única viagem da infância, lhe restavam os périplos do pensamento, que ademais, ele achava, deviam ter sido decisivos no sentido de destruir de uma vez por todas as perspectivas da realidade pra ele.”