Para todo o amante das letras é inegável o fato de que, durante a vida, será impossível ler todos os livros que se gostaria. Que dó. Já falei de forma breve sobre esse assunto em uma coluna anterior. Mas a verdade, também inegável, é que tentamos burlar isso sempre que há alguma chance. Por menor que seja.

Imagine o cenário: as estantes da biblioteca estão abarrotadas. Mas você chega na livraria e aquele título, desejado há tempos, está em promoção. Você compra. Claro! Ou, então: aquela editora que você adora dá 50% de desconto e ainda garante o frete grátis! Você também compra. Ou, mais: a rede de supermercados resolve liquidar todo o estoque! Compre um, leve três. Você compra, compra e compra. Quando vejo alguns amigos surtados nas redes sociais já sei que há alguma promoção (e das boas) acontecendo.  

Tenho amigas que disfarçam compras de sapatos e roupas. Sou perita em colocar livros novos para dentro de casa sem levantar suspeitas. Às vezes, especialmente durante a Feira do Livro de Porto Alegre, acabo disfarçando mal. Muito mal. E o Elio me pega em flagrante com dez ou quinze livros novos. “Não é pelo gasto, Lu. É pelo espaço”. Eu sei. E ele não reclama do gasto porque não sabe o quanto tenho comprado pelo Kindle. E, aleluia: esses são “invisíveis”.

Vamos imaginar outro cenário: você adquiriu todos esses livros, continua gastando e ainda não faliu. Ok. Mas e a pergunta: e tempo para ler todas as aquisições? E para reler livros que  ama?

Meu ritmo de leitura, mesmo antes da maternidade, nunca foi páreo para meu ritmo de compras. Trabalho, compromissos sociais, rotina doméstica. É muita concorrência. Sempre acabo fazendo promessa: ler primeiro as aquisições mais recentes. Leio um ou dois. E encontro outro perdido na prateleira. Ou releio algum de contos daquele autor que acaba de ganhar um prêmio. A pilha de novos vai se avolumando e se mistura com outros livros separados da prateleira, ou com aquele livro lindo de poemas que acabei de receber pelo Correio (hey, Caco Ishak!) e que tem meu nome nos agradecimentos. 🙂

Invejo de verdade aquelas pessoas que conseguem, de fato, ler tudo o que têm e que compram (aliás, se vocês existirem de verdade, se apresentem por aqui!). Conheço também alguém que fez promessa e cumpriu: Marco Lazzarotto ficou um ano sem comprar livros. Isso é o que eu chamo de extrema força de vontade de uma existência! Acho que seria difícil eu atingir a proeza.

Outra coisa é importante ressaltar: leio muito profissionalmente. Originais, livros que edito, leituras críticas, copiões para preparar uma assessoria de imprensa. Mas, atenção: para o meu levantamento, esse tipo de leitura não conta. É profissional. Vale a mesma regra do exercício: você pode cruzar o Centro inteiro a pé, mas se estiver trabalhando, andando com compromisso, com bolsa ou mochila nas costas e sapato no pé, não conta. Não vale como atividade física. O exercício físico eficiente deve ser focado, com roupa e sapato específicos e  objetivos determinados.

Estou, dessa forma, falando da leitura agradável, por prazer, deleite, entretenimento. A leitura marota. A leitura moleque. A leitura arte.

No último ano, tenho lido à noite. Algumas páginas antes de capotar de sono, às duas da manhã (após jantar e trabalhar um pouco, colocar a roupa para lavar e organizar a casa após o furacão nosso Lucas de cada dia). As pilhas? Ainda existem. Em diferentes cantos. A pilha dos livros novos. Dos presentes. Das relíquias da biblioteca. Dos livros com dedicatórias dos amigos. Dos livros teóricos de ficção. Daqueles que os amigos falaram “você precisa ler”. Do Kindle e sua organização imperceptível e discreta.

Todos, com certeza, livros que um dia eu lerei. Ou pelo menos tentarei.

Na Página 28 de Os cus de Judas, de António Lobo Antunes:

“Acordei algumas vezes em quartos de pensão manhosa sem haver entendido sequer como para lá entrara, e vesti-me em silêncio buscando os sapatos sob um soutien de rendinhas pretas no intuito de não perturbar o sono de um vulto qualquer enrolado nos lençóis, e de que percebia somente a massa confusa dos cabelos. De facto, e consoante as profecias da família, tornara-me um homem: uma espécie de avidez triste e cínica, feita de desesperança cúpida, de egoísmo, e da pressa de me esconder de mim próprio, tinha substituído para sempre o frágil prazer da alegria infantil, do riso sem reservas nem subentendidos, embalsamado de pureza, e que me parece escutar, sabe, de tempos em tempos, à noite, ao voltar para casa, numa rua deserta, ecoando nas minhas costas numa cascata de troça.”