Dando continuidade às colunas escritas nos dois meses que passaram, quero me deter um pouco sobre um curioso personagem do romance O sol também se levanta, do escritor norte-americano Ernest Hemingway. Publicado em 1926, o romance em questão se tornou uma obra emblemática para o que foi chamada de “geração perdida” pela escritora Gertrude Stein, entre outros motivos, porque expunha temas e questões que eram partilhadas por um conjunto de indivíduos cuja estada na Europa sob a sombra da guerra havia moldado profundamente seus espíritos. O personagem a que me refiro é Jake Barnes, o protagonista do romance, um ex-soldado que devido à guerra se tornou impotente.

Dado que o presente texto faz parte de um conjunto de textos que intentam apresentar a historicidade das partículas mais elementares da literatura – id est, nos detalhes –, o foco não será somente o personagem, mas sua condição de impotência referenciada num universo histórico e literário.

É sabido que Hemingway tomou parte na guerra e viveu suas agruras. É sabido também que foi um dos escritores da “geração perdida”, juntamente com Fitzgerald e Remarque, por exemplo. Tendo isso, portanto, em vista, pode-se afirmar com um certo grau de tranquilidade epistemológica, que sua produção se tornou significativa na medida em que não se restringia meramente a suas experiências individuais, mas sim alcançava a intersecção delas com outros sentimentos, atitudes e visões de mundo construídas e processadas socialmente. Se a “perdição” de Hemingway fosse somente dele, não haveria uma “geração perdida”, nem seriam suas obras tão universais quanto o são, nem tão repletas de sentidos acerca de seu tempo e dos dilemas de sua época.

Pois bem, se a literatura de Hemingway possui as marcas de sua apreensão epistemológica e artística – isto é, sua capacidade de inserir-se nas tramas da realidade através dos artifícios literários –, então é possível perceber que seus livros encenam dilemas que constituíam a própria realidade histórica, embora fossem interpretados através do “filtro” subjetivo que era a apreensão de Hemingway. Por isso é que Jake Barnes e sua impotência são mais do que Jake Barnes e sua impotência, ou seja, são mais do um simples personagem e um detalhe descritivo de sua persona.

A compreensão desse pressuposto abre um precedente interpretativo deveras interessante. O livro de Hemingway extrapola a literatura embora se mantenha literário em sua natureza: os dramas de um ex-soldado que se tornou impotente por conta da guerra expressam mais do que uma narrativa literária, expressam, sim, uma experiência histórica que foi tanto a de Hemingway quanto a de diversos outros sujeitos. A impotência de Jake é, a um tempo, fisiológica e histórica.

A condição de ser um ex-soldado que tenta voltar à “normalidade” da vida cotidiana não é somente um detalhe para dar estofo a um personagem, ele é um símbolo, uma espécie de recurso de expressividade pelo qual Hemingway procura lidar e dar forma à realidade e às suas próprias experiências, enquanto ele próprio, ex-soldado, tentava voltar à “normalidade” da vida cotidiana. Sem forçar a interpretação biográfica do texto, creio ser possível afirmar que O sol também se levanta tira boa parte de sua força do fato de se constituir uma experiência concreta, baseada no pragmatismo e na solidez insuperáveis e irredutíveis da vida e da realidade.

Antes que me atirem pedras, isso não quer dizer que exista uma relação simétrica e absoluta entre literatura e realidade, mas, sim, que existe um diálogo que antes de limitar a fruição literária, a potencializa em outras dimensões. O “simples” fato de O sol também se levanta ter sido canonizado e ter repercutido com tal força corrobora essa afirmação. É uma proeza de Hemingway, não há dúvida, mas o é, em grande parte, porque ele soube “ler” a realidade para encriptá-la em literatura. Digo encriptá-la por que ele se vale dos mecanismos da ficção e por isso insere sua “leitura” da realidade dentro de um universo com linguagem própria, e não porque ele busca torná-la indecifrável. O fato de O sol também se levanta ser considerado um roman à clef se torna mais significativo diante desses argumentos.

A impotência de Jake é um símbolo, um recurso ficcional que procura dar relevo a um problema real, sentido e vivenciado em sua crueza. A angústia dos homens que viveram à sombra da guerra os deixou impotentes para uma porção de coisas, embora não tenha embrutecido Hemingway a ponto de tirar-lhe a sensibilidade que percorre seus livros apesar da casca-grossa do estilo hard-boiled. A impotência de Jake é o estigma da guerra, da falência que acompanha o bafejar hediondo da morte sobre aqueles que, direta ou indiretamente, viveram cotidianamente com ela. Como Remarque tão bem notou em seu Nada de novo no front, seu livro – bem como grande parte da obra da “geração perdida” – “procura mostrar o que foi uma geração de homens que, mesmo tendo escapado às granadas, foram destruídos pela guerra.”

O fato de Hemingway dedicar tantas linhas à descrição admirada da tauromaquia e ao ritual muscular e másculo em que ela se constitui são interessantes desse ponto de vista. O uso da força bruta sublimava a impotência da condição de Jake, era uma forma de inserir-se no mundo e não ceder à melancolia e à angústia que parecem, a julgar pela literatura de Hemingway, seguir no encalço dos homens. A impotência contraposta ao vigor físico das touradas certamente possui nos seus detalhes os contornos de uma situação histórica. A expressão “pegar o touro pelos chifres” (que possui equivalente em inglês, take the bull by the horns) se recobre de sentidos metafóricos cujo fulcro não é outra senão a experiência humana em seus desconcertantes e fascinantes meandros.