ENTREVISTA EXPRESSA

A coleção Amores Expressos, projeto que levou escritores para diversas cidades do mundo, está no mercado editorial desde 2008 e teve, até o momento em que digito estas linhas, nove livros lançados dos 17 planejados. Tive a oportunidade de ler 7 deles – apenas J.P. Cuenca e Paulo Scott ficaram de fora da minha lista.

Pouco mais de 180 páginas me separaram de entrevistar Pellizzari, vulgo Mojo, o autor de Digam a Satã que o recado foi entendido. Esbarrei com ele durante a Flip duas ou três vezes, mas não tinha embasamento sobre seu último trabalho. Recebi meu exemplar pouco depois da nossa última microconversa e esperei até a viagem a São Paulo para folheá-lo até mais da metade sem piscar.

Mandei um e-mail descompromissado pedindo um pouco de seu tempo em um tête-à-tête, ou mesmo por correio eletrônico. Minhas perguntas seriam triviais e apenas um complemento para minha resenha. Na resposta ele pediu para ser por Gtalk, “por email eu acabo não respondendo e ao vivo falta tempo e eloquência”. Mal sabia ele que o Gtalk agora se chama Hangout.

Pior para mim que ao marcar a entrevista recebi o link para seu texto no Blog da Companhia das Letras. Literalmente: todas as minhas perguntas foram respondidas ali. Teimoso, decidi entrevistá-lo.

“Não  uso  ênclise,  pode  conferir  no  livro.  Sou  contra”, ele me disse durante a conversa que durou pouco mais de 30 minutos quando emplaquei essa colocação pronominal só para aparentar um pouco mais de apreço pela minha língua-mãe. Coloquei no texto por simples provocação. Usaria mesóclise, mas eu sou contra.

Mojo revelou em seu “post confidência” no Blog da Companhia que recorreu a leituras de seu manuscrito por amigos. “Ah, todo autor tem seus primeiros leitores. Pessoas de confiança para quem mostra as primeiras versões de um texto.” E ainda completou, “deram várias sugestões, algumas achei pertinentes, outras não, e mudei o que achei que deveria mudar. Mas é sempre bom ter esse primeiro feedback.”

Seu silêncio literário – não contemos traduções como as Ficando longe do fato de estar meio longe de tudo e Pulphead –, quebrado há pouco menos de um mês, valeu a pena.

A NARRATIVA

Digam a Satã que o recado foi entendido é um dos melhores de toda a coleção, além de ter um dos melhores títulos (e a melhor capa do ano). A história é intercalada por espaçamentos temporais e diversas vozes narrativas: Magnus Factor, personagem que abre e fecha o romance e do qual não sabemos exatamente a nacionalidade; Demetrius Vindaloo, grão-mestre de uma seita que mistura satanismo (ou algo que o valha) com seres galáticos (ou algo que o valha); Bartholomew O’Shaugness, um irlândes xenofóbico e dono de uma agência especializada em turismo mal-assombrado; entre outros. Todos estão interligados, quase na brincadeira de seis-graus-para-Kevin-Bacon, e a trama se desenrola em núcleos onde personagens podem ir e vir.

 

“A diferença, acho (ou espero) é que é um livro focado em personagens (ou seja, em pessoas), não na narrativa em si, na forma. Mas continuo tomando cuidado com isso, tentando trabalhar a linguagem, não tenho muito como fugir. Só não deixo mais isso em primeiro plano. Em Satã isso se manifesta na construção do discurso de cada narrador, mas está a serviço deles, do arco de cada personagem, e não é o ponto principal (como em Dedo negro com unha). “

 

OS PERSONAGENS

Pellizzari não se apega a uma única voz narrativa, temos sequências em primeira, segunda e terceira pessoa, cada qual cumprindo um papel e entregando diversos pontos de vista espalhados pelos três núcleos principais.

 

“(…) eu optei pela polifonia porque eu queria mostrar diferentes pontos de vista sobre as mesmas coisas de dentro dos processos mentais de cada personagem. Não tem muito glamour nisso, é só uma escolha técnica. Cada livro pede uma forma específica.”

 

Dessas vozes narrativas e processos mentais se constroem personagens mais tateáveis; uma hora os amamos, outra os odiamos. Somos espectadores de suas desventuras para ver a quais limites chegam. Com suas vozes próprias, podemos notar quais são as intenções de cada um, suas obsessões – milkshakes, videogames e sexo estão entre elas – e o que pensam uns dos outros e sobre si mesmos. Um dos narradores durante boa parte do romance parece um mero coadjuvante fadado a humilhações, mas tem tantos dilemas internos, tanta fúria que seu momento é um ponto alto da história.

Confidencio a Mojo que Barry é o meu favorito, por lembrar em vários momentos um dos protagonistas de O paraíso é bem bacana, o Mané:

 

“Acho  divertido  isso,  cada  leitor  tem  um  narrador  predileto.
(…)
Patricia é meu narrador predileto, a vontade era escrever um livro gigante só com ela narrando.”

 

Bartholomew, ou Barry, é um dos mais fascinantes e polivalentes. Um malandro que pensa ser mais esperto que os outros, mas tem muito a aprender. É o único amigo de Magnus na capital irlandesa e protagoniza o melhor capítulo de todo o livro, que mais parece um mergulho em um monólogo narcisista permeado por onanismo e ideias mirabolantes costuradas num péssimo vocabulário – mas não menos hilário do que podemos imaginar. A visão de Barry sobre as pessoas com que convive mostra o quanto ele não sabe o que acontece a sua volta e como gosta de estar acomodado e ligado ao seu próprio umbigo.

Para Mojo, “ele [Barry] é um canalha carismático. Mas é complexo também, ou pelo menos foi o que tentei mostrar. Não é puramente um vilão ou uma má pessoa, tem seus pontos cinzentos como todo mundo.”

Como todo mundo. É bom enfatizar.

Talvez esse seja o ponto humano ou o foco de personagens tão buscado pelo autor, para analisar o livro. É difícil encontrar um antagonista. Até o mais caricato “vilão” tem uma história de fundo que, para mal ou para bem, justifica a condição em que se encontra no presente da narrativa.

Todos os personagens carregam defeitos únicos em suas personalidades tortas e demasiado humanas. Todos são idiotas extraordinários (“o destino de todo mundo é virar idiota”, diz o avô de um personagem) e fazem parte de um círculo tortuoso em que suas decisões afetarão cada um dos personagens da trama mais cedo ou mais tarde.

Todos esses moradores de Dublin estão deslocados e em puro desconforto com suas vidas, com aqueles que os cercam e com o mundo. Este deslocamento inerente é irônico. Em cada núcleo reside um desacreditado no destino de suas ações para o bem coletivo. Zbigniew na agência, Rod e Marcel entre os anarquistas, Magnus sobre a própria vida, Patrícia sobre a seita de Demetrius e a lista se estende.

ANTES QUE O DIABO SAIBA QUE VOCÊ ESTÁ MORTO

O que exatamente é este livro de Daniel Pellizzari? A própria capa revela: é um ciclo. A serpente engolindo a própria cauda, o oroboro. O eterno retorno. Nós retornamos, não necessariamente iguais. Digam a Satã que o recado foi entendido é sobre decisões, sobre renovação – e os sinais estão aí: uma revolução anárquica, um apocalipse, um sacrifício, uma mudança de casa ou nome, uma separação, mas nunca uma destruição completa.

Aliás, onde está este Satã é onde reside a grande cartada de Pellizzari. Em nenhum momento deus ou o diabo são citados no livro. O mal tem várias facetas, mas aqui parece que Satã é como um título de nobreza. São Patrício, Lúmen Serpention, Pokémon, todos esses “símbolos” são citados, mas onde está o grande mal, senhor das trevas e belzebu? Por que só salvadores são citados e nunca os destruidores?

Satã espera a todos, ele está à espreita. É como se o demônio do título invocasse as invariáveis transformações do ser e do estar de Magnus, Barry, Stefanija, Demetrius, Laura, Patricia e todos às voltas da querida e suja Dublin de Joyce. Satã pode ser tanto o espírito da renovação e da mudança citados acima, quanto aquele que está no aguardo, como naquele antigo dizer irlandês: “que você permaneça um pouco no céu, antes que o diabo saiba que você está morto”, usado para nomear o filme de 2007 dirigido por Sidney Lumet. Coincidência ou não, a película estrelada por Ethan Hawke e Philip Seymour Hoffman é contada de vários pontos de vista, em vários momentos e com várias consequências para cada ato de traição e morte.

Por falar em cinema, “torço muito pra que vire filme, acho que poderia ficar legal. Os direitos estão vendidos, né (como todos de Amores Expresos). Agora é esperar”, afirmou o autor quase ao final da entrevista. E, claro, esboçou um desejo maior: “Mas teria que ser em Dublin, não se pode mudar o local porque a história é muito ligada a isso.”