Existe, para o trabalho criativo e literário, um inimigo pior do que a falta de inspiração. Digo mais: inimigo cruel e vingativo. É a falta de tempo. Alguns (poucos e felizes) podem contar com o horário comercial ou um farto conjunto de horas para produzir um texto. Outros tornam-se mais malabaristas do que escritores, tentando equilibrar, ao longo do dia, o tempo dedicado ao emprego formal (aquele que paga as contas), alguns frilas (aqueles que pagam os extras), às lides domésticas e outros compromissos sociais. Quando tudo isso acaba é que sentam na frente do computador para, finalmente, escrever.

Por aqui, julho foi assim: trabalho pela manhã, cozinhar o almoço do Lucas, fazer o Lucas dormir, brincar com o Lucas, arrumar a casa, trabalhar mais, dar banho no Lucas, dar o jantar para o Lucas, fazer o Lucas dormir, comer nos intervalos das tarefas, trabalhar ainda mais e, das 23h às 2h, escrever. Este é, usualmente, o horário em que produzo a coluna do Posfácio (oi, meu editor!). Em julho, este período foi tomado por outras tarefas. E, naturalmente, a coluna atrasou.Mas não pense que sou a única: há algumas semanas, a Folha de SP publicou uma matéria sobre a coleção Amores Expressos, que sofreu com diversos casos de atrasos no cronograma. Algo que, na minha opinião, é inerente (se não essencial) ao fazer literário. Por N motivos.

Há atrasos inevitáveis, como todos os que citei acima. São demandas importantes ou urgentes que acabam passando na frente da criação literária, que exige dedicação. Outros configuram uma simples questão de timing: como estabelecer, de forma fixa, o prazo em que um livro será escrito? Um ano é suficiente? Alguns escrevem em seis meses. E se o livro for encomendado? Acredito que a tarefa se torne ainda mais difícil.

Para aqueles que lidam com a inspiração, sem a pressão de editoras, o tempo pode funcionar de modos diferentes. Tenho um conhecido que escreveu a primeira versão do seu livro em três semanas. E reescreveu durante sete anos. O Samir Machado de Machado, meu colega editor na Não Editora, levou oito anos para considerar seu Quatro soldados finalizado. A Bíblia foi escrita ao longo de 1.600 anos (o que são duas semanas de atraso para a entrega da minha coluna frente a isso, né meu editor?).

Ao contrário da falta de tempo, o atraso não é tão assim inimigo da literatura. Ele até contribui para a aura de mistério do mercado editorial. Quanto charme esconde o nervosismo do editor aguardando que o autor finalize o original. Ou o jogo de cintura do departamento de marketing para driblar um atraso (imprevisível) na entrega dos livros pela gráfica. Aliás, quanto mais próximo do fim do ano, mais provável que esses atrasos de impressão ocorram. Afinal é o período em que muitas gráficas atendem demandas de impressão de agendas, calendários e outros materiais de promoção. Por conta disso, já vi caixas de livros adentrarem uma livraria quando a sessão de autógrafos já havia iniciado. A mais linda tensão do atraso.

Mesmo não sendo assim tão maléfico, o atraso sempre estará cercado de promessas para garantir que ele não ocorra novamente. “Foi só dessa vez.” “Realmente inevitável. A vida está corrida.” “Na próxima vai no prazo.” Viu, meu editor? Finalmente, segue a minha coluna do mês.

 

Na Página 28 de O homem despedaçado, de Gustavo Melo Czekster:

“Meu pai trabalha o dia inteiro. Como mamãe foi embora, ele precisa fazer muitas horas extras para pagar a prestação do apartamento, o meu colégio, a comida. Há dois meses, achando que eu estava muito sozinho, comprou um coelho. Coloquei o nome dele de Rex e faço de conta que é um cachorro. Papai disse que não podemos ter cachorro, porque moramos em um apartamento. Passo horas conversando com o Rex. Nas vezes em que sinto muita dor, conto para meu animalzinho e peço segredo. Sei que é só um coelho, mas juro que entende, parece tão esperto. A forma com que o Rex me olha faz com que eu me lembre dos olhos de mamãe. Ele está sempre com medo, o coração batendo forte como um tambor.”