por Maíra Ferreira

Muito já se perguntou sobre o que é e de onde vem a poesia. O questionamento, nascido tanto nos poetas quanto nos não poetas, percorreu gerações que, mesmo entrando e saindo de buscas incansáveis, voltavam sempre sem resposta nas mãos. E é também de mãos abanando que se encontra Yang Mija, protagonista de Poesia, filmado em 2010 pelo coreano Chang-Dong Lee.

Mija é uma senhora de sessenta e seis anos, que cuida do neto e se inscreve em um curso de poesia, mas acaba de descobrir que está com Alzheimer; uma senhora que, enquanto tenta arduamente escrever seu primeiro poema, descobre também que o neto participou do estupro coletivo de uma jovem, culminando no suicídio da menina. E é precisamente desse encontro de extremos que nasce a essência de Poesia.

Por um lado, a brutalidade da vida se mostra afiada desde o início do filme, quando – na sequência inicial – vemos crianças brincando perto do rio no qual aparece boiando o corpo da estudante estuprada. É logo ali, naquele primeiro contato entre o belo e o terrível, que surge na tela, silencioso e pontual, o título que irá nortear toda a história: Poesia. Já ao redor da personagem principal, a mesma crueldade em diferentes formas: a pobreza, a recém-descoberta doença (ainda no início, mas já presente), a decadência do velho de quem Mija toma conta, o estupro cometido pelo neto, a solidão diante dele, o suicídio da menina. São tristezas que vão circulando a obra como urubus, aparecendo mais como sombras do que como presenças concretas, e a sensação que fica é a de um olhar de relance, nunca havendo um enfoque real sobre a dureza de tais assuntos.

Por outro lado, no entanto, o delicado encontro de Mija com a poesia abre um olhar novo diante do mundo já muitas vezes revisitado. É nesse renascimento dela, em sua observação atenta diante de cada detalhe imperceptível, que o espectador se vê também obrigado a se reinventar, observando tudo com o mesmo cuidado, contemplando tudo com a mesma fascinação – desde coisas simples, como a textura de uma fruta ou a beleza de um temporal caindo, até as mais difíceis, como ouvir dos vários personagens quais eram as suas lembranças mais bonitas. Se a literatura consiste no estranhamento frente àquilo que até então era comum, o olhar fresco de Mija contamina o nosso, de forma que também nós somos impelidos a ver toda a poesia que a personagem enxerga em cada aspecto minúsculo do cotidiano.

É curioso, entretanto, que – durante grande parte do filme – Mija lute contra a dificuldade de escrever um poema, alimentando a ideia de que a poesia consiste em enxergar (e evidenciar), ao máximo, a beleza. A ideia de uma literatura que nasce do belo e se contrapõe ao grotesco da vida (como, por exemplo, a sexualidade aflorada de um dos leitores do sarau ao qual Mija acusa de “difamar” a poesia) aparece continuamente, conforme a personagem busca na escrita uma fuga para aquilo que é obrigada a vivenciar na realidade – um fato nítido na cena em que, ao invés de discutir o problema do neto junto aos outros pais dos garotos estupradores, a mulher sai da sala e vai tomar notas sobre a cor das flores no jardim. Fuga e esperança, fuga e tábua de salvação, na poesia de Mija só há espaço para as sutilezas das flores, nunca para a crueza dos espinhos.

O esquecimento proporcionado pelo Alzheimer, embora não muito explorado pelo roteiro, também entra aí como mais um fator de busca pelo literário, como uma forma de resgatar e manter aquilo que continuamente parece escorrer por entre os dedos. Já não são apenas os substantivos frequentemente desaparecidos da cabeça de Mija ou até mesmo a certeza de que novos substantivos e verbos e adjetivos sumiriam dela cada vez mais, mas também a lembrança da irmã falando seu nome e a imagem das cortinas vermelhas iluminadas pelos raios de sol, pequenos relicários tão frágeis em sua condição de memória escorregadia. É, portanto, à palavra que Mija recorre como única âncora possível diante do processo que já pressente e contra o qual não pode lutar.

Ao menos até o trecho final do filme, momento em que todas as tensões encontram seu ápice, culminando no tão aguardado e tão buscado primeiro poema. Este é escrito justamente a partir do encontro com a tristeza, de sua aceitação e seu acolhimento. Olhar a vida nos olhos, aceitá-la pelo que ela é, diria Virginia Woolf, apenas assim é possível enxergar o que existe para além da dor e, quem sabe, fazer dela um algo novo. O que Mija parece descobrir ao final de seu percurso é que a poesia não poderia nunca ser encontrada onde só existe beleza, mas sim onde ambos os extremos dialogam e se interpenetram: a delicadeza e a violência, a vida e a morte, o belo e o grotesco. Se, em um primeiro momento, vemos uma recusa da personagem diante do que existe de cruel (recusa transmitida pela escolha do diretor em passear suavemente sobre os assuntos de maior peso, sempre como um vislumbre ao invés de uma fotografia honesta), ao final do filme, assistimos à sua aceitação – dolorosa e lenta, mas necessária, como quem finalmente decide ouvir Virginia e olhar diretamente no rosto da vida.

Outro autor (dessa vez, francês) também diria algo parecido: “Deixar amadurecer inteiramente, no âmago de si, nas trevas do indizível e do inconsciente, do inacessível a seu próprio intelecto, cada impressão e cada germe de sentimento e aguardar com profunda humildade e paciência a hora do parto de uma nova claridade.” O “parto de uma nova claridade”, para Rilke, é decorrência de um longo processo, alimentado por profundas ausências, acatadas solidões e um olhar atento direcionado a si mesmo – ou, pode-se dizer, fruto de um forte escuro. Em Mija, talvez se possa dizer que o lugar da poesia é, na verdade, um entrelugar; algo entre esses espaços polarizados do belo e do grotesco, do macio e do áspero, da sutileza e da violência, do escuro e da claridade. Oscilando entre ambos durante todo o filme, fugindo de um para o outro e posteriormente aceitando esse inevitável encontro, Mija descobre – enfim – o ponto nevrálgico em que ambos os caminhos parecem coincidir: e é desse espaço, desse território de mistura e movimento, que nasce sua tão esperada poesia.

Com uma fotografia lindíssima e atuações maravilhosas (destaque óbvio para a adorável Jeong-hie Yun no papel principal), Poesia encanta, primeiramente, pela homenagem que faz à palavra e à poesia em si, enquanto espaço de construção e reconstrução contínuas. Mas vai além: acompanhantes do percurso de Mija que somos, também nós vivenciamos, com ela, a aceitação do cru e do difícil, atravessando-o honestamente até encontrar, para além dele, uma nova forma de beleza. Assim é o filme de Chang-Dong Lee: entre o sorriso e o choro – ou melhor, na pequena interseção em que ambos se encontram e já não podem se desvencilhar.

Sobre a colaboradora: Maíra Ferreira é carioca, tem 23 anos e estuda Letras na UFRJ. Quando não está pensando em literatura, está pensando em cinema. Atualmente, trabalha na escrita de seu primeiro livro, além de publicar pequenos textos em http://mairanaomoramaisaqui.blogspot.com e divagar sobre a sétima arte em http://cinespasmo.blogspot.com