Grandes expectativas orbitam o lançamento do novo livro de Michel Laub, A Maçã Envenenada, especialmente com todo o furor crítico que seu romance anterior, O Diário da Queda, foi recebido. Adicione-se a isso o inesperado fato de esse novo romance ser a segunda parte de uma trilogia iniciada em O Diário. O livro, intitulado a partir de “Drain You” do Nirvana, não apenas retoma por outro ângulo os temas do romance anterior como também dialoga intimamente com toda a obra do escritor gaúcho. Falo isso não levianamente, já que li toda a obra de Michel Laub nas últimas semanas.

Já é uma experiência curiosa ler toda a obra de um autor de uma só vez. Louco mesmo é fazê-lo em duas semanas. Mas faz todo sentido tendo em vista a proficuidade e a qualidade dos livros do escritor gaúcho exilado em São Paulo de 40 anos. Não é por acaso, portanto, que o editor desse estimado veículo decidiu encomendar um texto revisando toda a obra de Laub. E é claro, dada certa tendência isolacionista que os gaúchos teimam em confirmar em qualquer situação que envolva GENTE DE OUTRO LUGAR (vide a Flip 2013, eternizada na casa Posfácio como “a melhor Flip do ano”), que o nobre senhor PIPS clamou por um conterrâneo (no caso, eu) para realizar a empreitada. Máfia gaúcha, diriam alguns. Enfim.

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Há um célebre e famigerado crítico francês, daqueles que se tornaram proibidos de citar e por isso suprimo seu nome, que dizia ser o Estilo o principal critério de análise de um trabalho literário. Deixando de lado minha rasa leitura de tal crítico e os parcos conhecimentos que detenho sobre a mui-valorosa disciplina da estilística, não posso negar o fato de que o tal estilo seja a característica mais marcante do trabalho de Michel Laub.

Seus romances orbitam uma espécie de estrutura comum, uma forma que se estende desde a disposição dos capítulos, dos temas e da trama até o modo de construção da frase e dos personagens. Há um princípio organizador em seus romances que é indissociável de todos os outros. Michel tem uma visão narrativa que compreende todos os momentos de uma vida conjugados em um só. Cada instante possui, em potência, todos os outros e cabe à memória fazê-los emergir (não falaremos de madeleines aqui, por favor).

Por isso o estilo memorialista dos livros de Michel. Um contínuo de instantes que são resgatados de forma às vezes espontânea, às vezes induzida. São investigações da memória (pessoal e coletiva) para tentar descobrir o que, afinal de contas, nos constitui no momento presente. Não há uma trama propriamente dita posicionada no tempo e no espaço, onde os eventos se desencadeiam de forma linear. É sempre um vai e vem, uma reconstrução de fatos ou situações a partir de lembranças desencadeadas de forma desordenada, de acordo com a reflexão do autor.

É claro que essa reflexão sempre tem uma motivação. Os livros de Michel são escritos em primeira pessoa, na forma do relato de um narrador que investiga seu passado para descobrir algo. Esse algo é, quase sempre, um evento traumático que se tenta compreender para vislumbrar porque sua vida tomou determinado rumo. É uma busca por uma linearidade de causa e efeito, uma vontade de racionalização e explicação daquilo que é inexplicável, algo que a própria forma do livro acaba negando ao narrador.

“É por isso que faço o relato. É por isso que trouxe Albatroz à tona, que o transformei no ponto de partida da minha versão, o lugar onde eu entro na fila, na espera dos que precisam algum dia, perante algum tipo de juízo, diante de algum tipo de pergunta, definir-se de alguma maneira.” – diz o narrador em Longe da Água, numa frase que sintetiza bem o trabalho de Michel.

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Desde seu primeiro romance, Música Anterior (2001), esse estilo já aparece de forma bastante marcada. No livro, um juiz condena por estupro um camarada chamado Luciano, ao mesmo tempo em que recebe a notícia de que é estéril e precisa contar isso para sua esposa. A partir desse “conflito” duplo, Laub vai e volta nas lembranças do narrador, coletando fatos passados e tentando reconstruir a sua própria personalidade a partir certos eventos.

O primeiro capítulo é um bom exemplo desse modo de construção narrativa e diz, já na primeira página, a que veio.  O livro abre com uma frase de efeito (“Minha mulher não conseguiu ter filhos”) e varia, quase imperceptivelmente, para uma experiência conjunta entre o narrador e seu irmão num legítimo bordel porto-alegrense. O tom do livro chama atenção, pois é de uma frieza analítica um pouco desconfortável, falando de temas familiares delicados sem quase nenhuma afetação sentimental. A descrição de momentos emotivos é feita com distanciamento, apenas descrevendo friamente tais emoções. Próximo ao final do livro isso se explica, pois o mesmo é um relato escrito pelo narrador, onde a frieza é na verdade um modo de honestidade para que se possa julgar os rumos de uma vida.

Outro dos temas apresentados nesse romance e que irá se tornar central na obra de Michel é a questão do livre-arbítrio. “De uma dessas obras se podia chegar à conclusão de que não existe livre-arbítrio nas relações humanas: se se considerar ‘livre-arbítrio’ a liberdade de escolha entre duas opções, podemos dizer que livre é o sujeito que, entre os caminhos A e B, segue aquele com o qual tem mais afinidade. Só que esse sujeito escolhe A ou B por algum motivo – que pode ser religioso, cultural, ético, costumeiro ou que seja. A sua formação religiosa, cultural, ética, costumeira ou que seja não nasce por geração espontânea, depende de fatores preexistentes, de experiências vividas, da genética, de deus. Se o homem preferir a mulher X à Y é porque todo esse aparato o fez ao longo da vida experimentar sensações que determinaram um direcionamento da sua libido para essa ou aquela característica do sexo oposto. Ele escolherá entre X e Y de acordo com esse condicionamento anterior, ou seja, não é livre para escolher.” Não admira, portanto, que os livros de Michel assumam essa forma de investigação. Uma listagem de tudo aquilo que pode ter nos levado a escolher entre isso ou aquilo, a levar a vida que hoje levamos.

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No segundo romance de Michel, Longe da Água, permanece o narrador confessional de meia-idade, mas há uma pequena variação de tema. Ele não está tentando compreender o que acontece com ele “agora”, mas sim reviver um período de sua adolescência que, de acordo com seu julgamento, foi determinante para o rumo que sua vida tomou. A trama, se eu planificar o livro que é todo não linear, é centrada na morte de Jaime, seu amigo de infância, quando este é preso em uma rede de pesca enquanto surfava com o narrador. Jaime era vizinho de Laura em Albatroz, legítimo microbalneário gaúcho espremido entre praias maiores, e ambos tiveram um NAMORICO JUVENIL justamente no verão da morte de Jaime. Laura e o narrador começam a frequentar a casa de Jaime em Porto Alegre após sua morte, como forma de lidar com essa perda, e acabam se aproximando até que, alguns anos depois, tornam-se namorados.

A grande questão desse livro é o embate entre verdade e memória, testemunho e experiência. Ele investiga esse fato traumático pelos dois lados, a partir de sua própria experiência e da experiência reconstruída de Laura. A dele tem por base sua memória; a dela, o testemunho. Existe, em alguma delas, um índice que possa afirmar a verdade do que aconteceu para algum deles? É apenas a partir da vivência concreta do fato que se pode compreendê-lo ou há algo escondido no relato do outro que pode clarear aspectos de sua própria experiência? A memória seria, por si só, indicativo de uma verdade? E saber a verdade, mudaria algo?

Já seria uma investigação digna de nota por si só, mas há mais tragédias laubianas pela frente, quando Laura morre em um acidente de carro em que o narrador dirigia. Duas tragédias, envolvendo as mesmas pessoas, e com o narrador servindo de testemunha para ambas. É suficiente para que se empreenda um relato onde seu centro se posiciona numa presumível culpa do narrador: “As pessoas que falam sobre culpa não entendem, elas acham que o consolo são relações simplórias de causa e efeito, autoria e omissão, só que para mim era mais complexo.” Os fatos ocorreram num passado relativamente longínquo, e ambos de maneira muito rápida. Teria o narrador conseguido salvar Jaime? Teria ele evitado o acidente que vitimou Laura?

A busca é pela verdade, por uma reconstrução fidedigna das condições que o levaram a agir daquela forma, de como se sentiu, do que deveria ter sido feito. Mas a memória e o próprio relato se afastam da verdade, contaminam o “real” que já ficou para trás (será mesmo que foi assim?). Se a tentativa é de relatar para compreender, o livro mostra que as relações de causa e efeito são frágeis e ao final o narrador fica entregue à própria sorte. Ironicamente, e de forma dolorosa pela ingenuidade, ele fala: “A sorte é que o presente é real, e eterno, e blindado contra o resto da memória.”

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O Segundo Tempo, romance seguinte, reafirma de forma mais explícita algumas tendências da ficção de Michel Laub. A primeira delas é a de que cada instante está impregnado de todos os outros, e a memória é o dispositivo para revelá-los. Diferentemente dos livros anteriores, a história aqui transcorre em um tempo e espaço determinados: o famigerado Grenal do Século, em 1989. Nesse ponto não seria surpresa para ninguém dizer que Laub é um homem afeito às tragédias, e eu, como um bom gremista, senti uma profunda dor ao ler sobre O CARRASCO NILSON marcando os dois gols na virada mais trágica e inexplicável da história do futebol gaúcho (referência aqui ao Clube Atlético Bahia que preveniu que o desastre fosse ainda maior).

O narrador, com 15 anos na época do jogo, leva seu irmão quatro anos mais jovem para esse massacre futebolístico como forma de talvez amenizar (em caso de vitória) a notícia que será dada após o jogo: seu pai está abandonando sua mãe para ir morar com a namorada GRÁVIDA em Goiânia. Não apenas isso, sua mãe tem um condição bipolar e já tentou o suicídio, e seu pai faliu o minimercado da família. Drama familiar é mato nessa história.

O livro transcorre com descrições minuciosas dos lances da partida e, em paralelo, o narrador vai remontando um período de quatro anos que ele julga culminar naquele momento: a traição de seu pai, a doença da mãe, ter que explicar isso tudo para uma criança de onze anos. O jogo seria uma compensação, um modo de se refugiar desse drama tão particular. Mas o que ocorre é o inverso, pois é durante essa catarse coletiva massiva que a investigação do narrador vai cada vez mais fundo em suas lembranças pessoais. “Na arquibancada do Beira-Rio, no momento em que vi a arrancada de Marcos Vinícius, eu deveria estar pensando no que significavam as palavras da mãe.”

Tem aí um segundo ponto que aparece no livro, algo importante e que irá ser central nos livros seguintes: o contraste entre uma tragédia massiva (posso estar exagerando aqui no termo “tragédia” mas entendam que sou gaúcho E gremista) sobre a qual a gente não tem nenhum controle, e o drama pessoal. Pois é a partir do comportamento das torcidas, da atenção suspensa de 80 mil pessoas, todas unidas em um só ser-torcedor, que o indivíduo do narrador aparece e sua vida familiar é exposta. Ainda que essa memória involuntária não tenha uma relação direta com a experiência do jogo em si, é no espaço do estádio que ela emerge. Parece que é partir do transe reflexivo da multidão que surgem os traços constitutivos do indivíduo, que é o importante para o autor.

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O livro seguinte de Michel, O Gato diz Adeus, é um tanto sui generis dentro do contexto mais geral de sua obra. Estão ali os temas centrais, mas é um livro que se propõe a diferentes relações. É o mais “metaliterário” de todos, pois trata-se de um livro escrito pelo personagem principal (ainda que todos os outros também o sejam, O Gato é mais explícito nessa relação). Mas acredito que seja no Diário da Queda que a tendência ensaiada em O Segundo Tempo seja radicalizada e mais bem realizada.

O livro teve um sucesso estrondoso de crítica e muito sobre ele já foi escrito com muita propriedade. Não quero me enfileirar na FORTUNA CRÍTICA fazendo um comentário totalizante da obra, apenas ressaltar alguns pontos que dialogam diretamente com a obra de Michel.

As relações entre um fato traumático de ordem pessoal, um acidente num colégio, com um dos maiores traumas da humanidade, o Holocausto, são exploradas lado a lado, tentando racionalizar de que forma essas duas tragédias influem na constituição da identidade de um indivíduo.

Se a forma escolhida pelos narradores de Michel é a do relato confessional para tentar compreender O QUE SE PASSOU AQUI (ah, esses críticos franceses), cria-se nesse livro uma tensão: como escrever sobre o Holocausto, mesmo que para entender o que ocorre comigo agora? A vivência da experiência e a busca pelo seu sentido ou explicação, como ocorre em Longe da Água, aqui fica mais complexa. O narrador não teve a experiência do Holocausto, apenas mediada pela literatura de Primo Levi ou do diário de seu avô. Ainda assim, ele compreende que essa pseudo-experiência é constitutiva de sua identidade. Escrever sobre Auschwitz sem ter vivido Auschwitz, sem ter o contato direto com esse NÚCLEO DO REAL faz algum sentido? O narrador assume uma posição relativamente egoísta quando aproxima um drama pessoal laubiano do Holocausto e tenta, a partir desse paralelo, reconstruir a sua vida e personalidade no cruzamento desses fatos.

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“Como evitar que a memória se misture com a culpa, a autopiedade e a autoindulgência nos anos e décadas que seguem um evento assim?”

Depois dessa longa empreitada de ler e escrever sobre todos os livros de Michel Laub, o aparecimento dessa frase em A Maçã Envenenada é quase um alívio. Tendo uma certa intimidade com os temas que foram surgindo a cada novo livro, especialmente a formação de identidade a partir da sobrevivência de um evento traumático e o modo como a memória lida com isso, não me surpreende que essa problematização apareça de forma tão explícita aqui.

A Maçã retorna ao Michel de Longe da Água e de Segundo Tempo, um passo atrás em relação ao grandiosismo de Diário. O livro conta a história de um jovem de Porto Alegre nos anos 90, sua banda, sua entrada no exército, o suicídio de seu ídolo-mor Kurt Cobain, seu relacionamento com uma legítima “mulher gaúcha” descontrolada e o massacre ocorrido em Ruanda. Sendo a segunda parte de uma trilogia, não admira que apareça, além das tragédias laubianas, a presença de Ruanda na vida desse personagem. Mas além de refazer o processo iniciado no Diário, tentar compreender como uma catástrofe dessa magnitude pode afetar a vida de um jovem no fim do mundo de Porto Alegre, Laub retoma as questões já ensaiadas nos seus livros de adolescência para colocar em questão de vez a relação entre o relato, a memória, a experiência e o livre-arbítrio.

Tentando dar uma ordem para a história, a função segue mais ou menos o seguinte. Um jovem estudante de direito conhece Valéria num Bambus genérico tomando vodka vagabunda. Para um porto-alegrense vacinado, esse fato já é por si só pregnante de uma tragédia futura, tendo em vista o histrionismo constituinte da Mulher Gaúcha Frequentadora Assídua Do Bambus. Como já era de se esperar, uma banda é formada junto com o relacionamento. Nos intervalos entre as promessas de fim de relacionamento e ameaças de morte por parte de ambos, o jovem é selecionado para servir no CPOR. Durante seu tempo de serviço, é anunciado o show do Nirvana em São Paulo, e ele precisa decidir se irá fugir do quartel para acompanhar Valéria na viagem. “Nada pode ser tão banal, mas não é bem disso que estamos falando.”

Como o livro tem a forma do relato mais uma vez, os fatos futuros são determinantes para que o narrador escolha justamente esse período para retratar. Pois ele decide não ir ao show do Nirvana devido a um episódio envolvendo o consumo da droga maconha no quartel e uma chantagem de seu parceiro de crime. Acontece que no show Valéria (cocainômana) acaba falecendo depois de uma experiência com lança-perfume, trágicas ironias. Algum tempo depois Kurt Cobain comete o suicídio, os Hutus decidem acabar de vez com os Tutsis e o narrador se envolve num acidente de carro que o tira do quartel.

Laub, em A Maçã, dá um passo a frente em seu projeto de compreensão das tragédias. Há diferentes ordens de traumas em jogo nesse livro, assim como em toda sua obra. Há aquelas tragédias que escapam ao nosso controle, como doenças ou acidentes. Há outras que parecem surgir da livre-agência humana, como decidir matar todo um povo ou acabar com a própria vida. Seria fácil, entretanto, julgar um ou outro evento traumático, como o suicídio de Kurt Cobain por exemplo, dentro dessas classificações. Pois não apenas tais eventos afetam os envolvidos, mas reverberam para aqueles que nada tem a ver com o acontecido.

Mas é justamente o modo como esses traumas são enfileirados no livro, sua constituição, que parece querer colocar em cheque essas duas questões: a impossibilidade de reconstituí-los em sua plenitude e julgá-los e de que forma eles podem invadir a vida do outro. Valéria aparentemente morre por acidente, num ataque cardíaco causado pelo uso de lança-perfume. Entretanto, ela já havia um histórico de tentativa de suicídio e sabia que tinha uma condição cardíaca. Foi acidente ou suicídio? O mesmo ocorre com a morte de sua mãe, que faleceu num acidente de carro com ares de suicídio. A questão da livre-agência ou daquilo que escapa ao nosso controle se confundem, e a tentativa de reconstituir os fatos TAL COMO SÃO se revela infrutífera.

O que se coloca aqui é a tentativa de tentar explicar o inexplicável e a inevitável falha em fazê-lo. Se em Longe da Água a problemática era reconstruir um momento passado a partir do relato, em A Maçã (que em muitos momentos é um livro-irmão de Longe da Água) Laub cria um narrador que não tem essa consciência e passa o livro tentando julgar e compreender o que aconteceu. Kurt Cobain foi egoísta? Ou o egoísmo seria querer explicar o seu suicídio de acordo com o modo como ele me afeta? Se o projeto de Laub até então era investigar o modo como eventos traumáticos nos constituem a partir de nossa memória insistente, aqui há um ponto de inflexão. O relato, parece, não dá conta de uma explicação e se torna apenas isso, um relato – o testemunho da constituição da nossa identidade.

Isso se torna ainda mais claro com a questão de Ruanda, que aparece na figura da escritora Imaculée Ilibagiza. Ela é uma sobrevivente do massacre, passou 91 dias com outras sete mulheres num banheiro minúsculo. Sobreviveu para contar. Mas o seu livro não chega a uma explicação razoável, é apenas um relato de fé cristã, o testemunho do modo que encontrou para sobreviver. Para o narrador, que busca compreender os eventos de sua própria vida de uma forma causal e linear, Ruanda e Imaculée aparecem como o contraponto necessário, expressos claramente nos capítulos em itálico do livro (especificamente o 85 e o 88).

Ao final, fica a ideia de que julgar o outro ou até mesmo um fato com base no modo como eles nos afetam no nível pessoal, ainda que por vezes necessário para lidar com a culpa ou a perda, tem um lado egoísta que é reconhecido no conjunto da obra de Michel. Talvez o que resta é a compreensão daquilo que é inexplicável e simplesmente acontece. Racionalizar o fato num relato, por exemplo, pode trazer um conforto semelhante ao do alcoólatra que anota religiosamente todas as garrafas que consome, confundindo registro com controle. Entretanto, o reconhecimento final de que “a vida tem mistérios, só isso”, da tragédia ao extraordinário, é o que fica da obra de Michel daqui pra frente. Isso e a questão de como continuar vivendo, que o narrador de A Maçã responde na última frase do livro, perguntando a você se deve acelerar o carro.