Em Paris, sob as pontes do Sena, um homem vestido elegantemente caminha em busca de alguém. E é sob uma dessas pontes que encontra a pessoa a quem estava procurando, um mendigo andrajoso que casualmente se levantara e se dirigira a ele. Não é que ele buscasse especificamente esse mendigo, mas foi ele que se tornou depositário da quantia de duzentos francos e credor de Santa Teresinha do Menino Jesus.

Essa é a sequência que abre a novela A lenda do santo beberrão, de Joseph Roth. Publicada em 1939, seis anos após a morte do escritor austro-húngaro, ela é considerada como um de seus melhores trabalhos, assim como uma espécie de testamento de Roth.

O homem desaparece e o mendigo se vê às voltas com uma situação nova para ele: uma existência na qual ele possui dinheiro. A única condição imposta pelo benfeitor misterioso foi a promessa de que o mendigo compareceria à igreja de Sainte Marie des Batignolles num domingo e doaria quantia igual à santa supramencionada.

Um tanto atordoado pela miraculosa oportunidade que lhe fora posta no colo, o mendigo – que posteriormente descobrimos chamar-se Andreas – resolve assear-se às margens do Sena e partir para um restaurante onde pudesse saborear um Pernod e uma refeição farta.

Foi numa das excursões a um dos bares, restaurantes e cabarés de Paris que Andreas se depara com um sujeito que, após breve conversa, resolve empregá-lo como carregador da mudança de sua casa. Assim como essa, outras oportunidades vão surgindo para Andreas, como quando ele ganha uma carteira para guardar seu dinheiro, ou quando vai encontrando outras formas de ganhar dinheiro, seja com doações ou com pequenos trabalhos.

A sucessão de boas oportunidades e boa fortuna parece querer tornar a trama carente de verossimilhança, mas é tudo parte dos artifícios imaginativos da ficção, especialmente de Joseph Roth, cujos temas recorrentes são a errância, a boêmia e o desenraizamento existencial. Os limites da plausibilidade são esticados para que a ficção esteja apta a cotejar tais reflexões morais e filosóficas do escritor.

Apesar de Andreas nunca se esquecer da promessa feita à Santa Teresinha do Menino Jesus – ele chega a ir à igreja mais de um domingo –, seus hábitos boêmios o impedem de cumpri-la em definitivo. Ou ele encontra algum companheiro de mendicância ou algum velho amigo ao qual resolve pagar uma rodada de Pernods.

Aos poucos Roth vai desenrolando a trajetória pregressa de Andreas, como sua paixão por Karoline – que o levou à cadeia – ou sua amizade com o então craque do futebol Kanjak. Tais eventos, juntos e devidamente colados uns aos outros, vão se juntando e dando forma às andanças de Andreas.

O mendigo protagonista é acometido de uma tremenda sorte, a qual não sabemos se esmeradamente lapidada pelo destino ou decorrente daqueles duzentos francos iniciais, afinal, foi a posse do dinheiro que o levou a percorrer outros espaços sociais, encontrar outras pessoas e ser visto por elas com olhos diferentes. Um exemplo disso é seu encontro com Kanjak, o famoso jogador de futebol: Andreas o conhecia do banco da escola – fator sob o qual o dinheiro não tem nenhuma influência –, mas tê-lo encontrado foi um acaso criado pela posse do dinheiro, já que foi esse que permitiu que Andreas frequentasse determinados espaços e fosse minimamente admitido (a palavra mais adequada talvez seja “tolerado”) em outros. A dubiedade em torno dessa questão é certamente um dos melhores ingredientes do livro.

De um pobre-diabo que vivia sob o abrigo das pontes, Andreas passa a um homem ordinário com algum dinheiro no bolso. Materialmente falando não se trata de uma grande mudança – ele continua dormindo coberto por jornal em algumas noites –, mas a vida cujo usufruto se torna possível a ele é muito diferente da de outrora. Acredito que seja nesse ponto que reside um dos mais fortes questionamentos de Joseph Roth: o dinheiro é um elemento que possibilita a saída dos mendigos de debaixo das pontes ou é ajuda a mantê-los lá embaixo?

O que se encontra subjacente nessa pergunta é o reconhecimento de que não é o dinheiro em si que atua de maneira tão determinante na vida do personagens, mas a realidade histórica que permite que o dinheiro tenha tamanho poder. O dinheiro catalisa a história, funcionando como fio de costura da narrativa – inclusive pelo seu valor simbólico –, mas não resume a questão. Ele orienta o olhar, mas não sintetiza o potencial literário e moral de A lenda do santo beberrão.

Nesse sentido a própria maneira como Andreas usa seu dinheiro é interessante. Joseph Roth foi um bon vivant que deixou a sua pátria passada, o Império Austro-Húngaro desagregado, para viver em Paris e lá escrever vários de seus livros, inclusive este que está aqui sendo dissecado. A vida boêmia continha um componente espiritual e histórico muito intenso, pois Roth vivera os horrores da guerra, de modo que sua busca – seu flâneur, talvez se possa dizer – tivesse muito da tônica da “geração perdida”: algo sôfrego e melancólico que não perdia sua sede existencial, seu carpe diem.

Se Roth contou a história de um mendigo com o tom fanfarrão de A lenda do santo beberrão, sabemos estar diante de um escritor que valorizava aquela despreocupação do modo de vida de Andreas como algo, no mínimo, digno de se tornar tema de um livro. O desenraizamento dos “regressados”, aqueles sujeitos que voltaram do front após o fim da Primeira Guerra Mundial, encontra-se incrustado no movimento constante de Andreas, em sua ânsia de levar uma vida folgazã ao invés de preocupar-se com rendimentos futuros ou com o acúmulo de dinheiro.

O desfecho da história expressa muito bem a visão de Roth a esse respeito, pois ele faz o misticismo religioso se encarnar numa solidariedade humanista, na qual – sem revelar detalhes cruciais – o milagre da doação e a cobrança da dívida se fundem numa catarse sacramente humana. Tudo isso se passa numa espécie de bar em frente à igreja de Sainte Marie des Batignolles – que lugar seria mais emblematicamente apropriado?

A lenda do santo beberrão é daqueles livros que podem facilmente ludibriar o leitor por conta de seus contornos aparentemente simples. Se trata de um livro que encontra ressonâncias profundas na obra de Roth e em toda a situação histórica pela qual passava a Europa após o cataclismo da Grande Guerra de 1914. Se trata de um livro que demonstra a maneira pela qual o espírito de uma época e de uma sociedade foram experimentados, interpretados e transformados em literatura por um excelente cronista. Eis porque, pois, a novela é tida como o testamento de Roth.