“As máquinas de guerra vêm aí, mas não tenha medo. O problema não são as máquinas que se aproximam da cidade, são as máquinas que já aqui estão. (p. 15)”

No segundo livro da tetralogia “O reino”, A máquina de Joseph Walser, não temos meramente uma guerra. Não se trata da guerra no senso que aprendemos na escola: dois países, dois povos, duas forças armadas em conflito. Nesses livros do português Gonçalo M. Tavares, não há uma outra nação para se guerrear. O estado de exceção da guerra se cria a partir da violência ali presente, não há um único inimigo à vista. A agressão pode vir de qualquer lado.

As máquina da guerra são, portanto, as que estão aí. Joseph Walser, nosso protagonista, ele próprio poderia ser interpretado como uma máquina, um robô. Trabalhador servil, obediente, cujas relações são frias, incluso seu casamento com Margha. Apenas pensa em sua máquina, mantendo-se “neutro” na guerra, como declara a todos. Também lembra-se constantemente de sua “coleção”, composta misteriosamente de peças de metal, partes de objetos, partes de máquinas. Na fábrica onde trabalha, também se relaciona com uma máquina. Ela é perigosa, porém é encarada como parte de si por Joseph. Quando acontece o acidente, quando perde seu dedo na máquina e não pode mais trabalhar com ela, perde vida aos poucos.

Joseph Walser, cujo sobrenome nos lembra Robert Walser, o escritor suíço (alguma semelhança?), parece ser uma espécie de guia por essa reflexão filosófica e sociológica que também é a obra literária de Gonçalo. Personagem kafkiano por estar no mundo do processo, Walser apenas deseja se manter com sua máquina, como uma máquina, sem problemas com relações humanas. A guerra que estoura lhe é indiferente porque não se entende a lógica do conflito. O que ele não percebe é que essa mudança de estado de ordem – afinal a guerra não é uma falta de estabilidade, mas sim o estabelecimento definitivo de uma ordem – vem para afetar sua própria situação. As máquinas da guerra também são máquinas, portanto também afetam sua vida mecanizada.

É notável nesse segundo volume do “Reino” que, diferentemente de Um homem: Klaus Klump e Jerusalém – cujos personagens aparecem eventualmente neste romance –, essa narrativa é mais centrada em uma personagem, o já mencionado Joseph Walser. Sua esposa Margha e seus colegas Fluszt e Klober têm participação no enredo, porém vemos tudo a partir da posição de Walser, apesar da narração se dar na terceira pessoa. Considerando que o protagonista evita amores e amizades, acredito que faz sentido se sentir ao redor do pensamento de um único indivíduo, especialmente de um que evita justamente a individualidade. Walser é apenas mais um; representa um coletivo amorfo, sem quaisquer peculiaridade entre seus membros. Ele é fruto de uma sociedade que trata seus membros como máquinas de guerra mesmo fora da guerra. São todos iguais na deformação

A máquina de Joseph Walser é, portanto, um romance sobre um homem já formado dentro de uma perspectiva reificada da vida. Mesmo a coleção particular de Joseph Walser, secreta até para sua esposa, é composta por meros objetos. Coleções são, é claro, formada por objetos – espero que não haja coleções de seres vivos –, porém o fato de eles serem somente peças de metal evidencia a coisificação do pensamento individual. Nessa nação autoritária e militarizada, com ares fascistas, a guerra é o único meio de se manter a ordem imposta, de estabelecer a obediência como fundamento da vida de um indivíduo como Joseph Walser, cuja personalidade é abstraída.