E a cobertura posfaciana da Fliporto se inicia já no segundo dia do evento. No dia inaugural, a conferência de abertura com Pilar del Río, essa fofa que já nos concedeu uma entrevista bastante visitada, foi devidamente trocada por outra coisa iniciada com P: Porto de Galinhas. Como não só de literatura vive o homem e como mais interessante deve ser ler Saramago do que ouvir a esposa dele, creio que foi uma troca justa.

Às 14h dessa sexta-feira, 15 de novembro de 2013, iniciou-se o papo do Congresso Literário da Fliporto com os escritores Robert Löhr e Ignacio del Valle e o tradutor e ficcionista Ioram Melcer, com mediação de Cristhiano Aguiar – sim, aquele da famigerada edição da Granta dedicada aos melhores jovens escritores brasileiros (o conto dele, “Teresa”, foi debatido por este portentoso veículo de comunicação). O tema da conversa (a saber, “Literatura: qual é o jogo? De Julio Cortázar ao jogo de xadrez e do romance policial ao que vier na memória”) interessou-me e foi assim que decidi cair de paraquedas justo nesse horário, uma vez que não conhecia a obra de nenhum deles. 1 Ignacio del Valle pareceu-me ser o equivalente da Fliporto do que foi o Laurent Binet na Flip deste ano, com seu protagonista contraditório (um anti-herói, como sói à literatura contemporânea), com a presença de Hitler, com seu desejo de fazer uma história da violência. Robert Löhr, por sua vez, ainda que tenha falado relativamente pouco sobre A máquina de xadrez, 2 conseguiu fazer com que eu pesquisasse se seu livro está disponível na biblioteca pública que frequento. 3

A respeito do embate entre imaginação e documentação histórica, del Valle afirmou que, após toda a pesquisa feita, é necessário esquecer um pouco os documentos a fim de produzir um livro de ficção. Afinal, também se constrói a partir das elipses. Cenários precisam ser criados, pensamentos e intenções podem ser insinuados. Tudo, mesmo os documentos, são passíveis de diferentes interpretações. Depois, Löhr seguiu o pensamento confidenciando que a baita pesquisa que faz está a serviço da estória. Ela é quem dá as cartas, pois ficção sempre é ficção. Creio que foi ele que finalizou sua fala citando que “History is just the repository of my fantasy“. 4

Outro momento interessante na conversa foi quando houve uma divergência entre Melcer e Löhr – aquele defendendo o ato de não pensar no leitor (não entendi se ele se referia ao que produziu Cortázar, que muito me interessa, ou à sua própria literatura, que não poderia me interessar menos) e este dando importância à experiência do leitor comum. Melcer despertou minha atenção quando apontou que, mesmo nos livros mais esquisitos do Julinho, 5 há quem se identifique tanto que saia por aí dizendo que o escritor os escreveu só para ele. Um romance/conto/escrito para chamar de meu. Robert, por sua vez, atentou que é necessário engajar o leitor a fim de que ele não abandone o livro antes do fim – sempre uma tentação quando o autor parece não estar nem aí para ser compreendido, como quando cisma de 6 reinventar a linguagem.

Para compensar o momento inspirado, Melcer discorreu depois sobre como a literatura é parecida com o futebol, pelo modo como ativa a sua mente – cada jogador um personagem de uma história, com a honestidade de quem quer fazer logo um gol misturada ao exibicionismo de quem se sabe televisionado. As criaturas que entendem de futebol talvez vejam poesia nisso tudo, mas tudo em que pude pensar foi “Ahn?”. 7 Ok, ele fez referência ao tema geral da Fliporto, mas acredito que haveria outras formas mais interessantes (e menos óbvias, claro, em se tratando de um evento no Brasil, nação mundialmente conhecida por carnaval, caipirinhas e futebol) de fazê-lo.

Mas aí ele me conquistou novamente, incitando-me a começar O jogo da amarelinha pelo capítulo 43, o primeiro escrito por Cortázar. E essa foi uma das coisas que ficou, já que, como diz o poeta, “de tudo fica um pouco” (veja o poema no final do post). Ficou a vontade de ler A máquina de xadrez, o debate sobre pensar ou não no leitor e essa dica do capítulo 43.

Hoje tem mais Fliporto. Tem Ana Maria Machado, que provavelmente dedicará parte de sua fala para reclamar do jurado C e de não ter ganho o Jabuti no ano passado, tadinha. 8 Tem entrevista com o Bauman (autor de, entre outros, O amor líquido A modernidade líquida), provavelmente lembrando aos turistas literários de que se hidratar é muito importante nesse calor todo de Olinda. E tem Francisco Azevedo e Maitê Proença conversando sobre crônicas e amores.

[Resíduo, de Carlos Drummond de Andrade

De tudo ficou um pouco/Do meu medo. Do teu asco./Dos gritos gagos. Da rosa/ficou um pouco//Ficou um pouco de luz/captada no chapéu./Nos olhos do rufião/de ternura ficou um pouco/(muito pouco).//Pouco ficou deste pó/de que teu branco sapato/se cobriu. Ficaram poucas/roupas, poucos véus rotos/pouco, pouco, muito pouco.//Mas de tudo fica um pouco./Da ponte bombardeada,/de duas folhas de grama,/do maço/- vazio – de cigarros, ficou um pouco.//Pois de tudo fica um pouco./Fica um pouco de teu queixo/no queixo de tua filha./De teu áspero silêncio/um pouco ficou, um pouco/nos muros zangados,/nas folhas, mudas, que sobem.//Ficou um pouco de tudo/no pires de porcelana,/dragão partido, flor branca,/ficou um pouco/de ruga na vossa testa,/retrato.//Se de tudo fica um pouco,/mas por que não ficaria/um pouco de mim? no trem/que leva ao norte, no barco,/nos anúncios de jornal,/um pouco de mim em Londres,/um pouco de mim algures?/na consoante?/no poço?//Um pouco fica oscilando/na embocadura dos rios/e os peixes não o evitam,/um pouco: não está nos livros.//De tudo fica um pouco./Não muito: de uma torneira/pinga esta gota absurda,/meio sal e meio álcool,/salta esta perna de rã,/este vidro de relógio/partido em mil esperanças,/este pescoço de cisne,/este segredo infantil…/De tudo ficou um pouco:/de mim; de ti; de Abelardo./Cabelo na minha manga,/de tudo ficou um pouco;/vento nas orelhas minhas,/simplório arroto, gemido/de víscera inconformada,/e minúsculos artefatos:/campânula, alvéolo, cápsula/de revólver… de aspirina./De tudo ficou um pouco.//E de tudo fica um pouco./Oh abre os vidros de loção/e abafa/o insuportável mau cheiro da memória.//Mas de tudo, terrível, fica um pouco,/e sob as ondas ritmadas/e sob as nuvens e os ventos/e sob as pontes e sob os túneis/ e sob as labaredas e sob o sarcasmo/e sob a gosma e sob o vômito/e sob o soluço, o cárcere, o esquecido/e sob os espetáculos e sob a morte escarlate/e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes/e sob tu mesmo e sob teus pés já duros/e sob os gonzos da família e da classe,/fica sempre um pouco de tudo./Às vezes um botão. Às vezes um rato.]

  1. Aparentemente não há tradução brasileira para del Valle, muito menos para Melcer, mais conhecido por seu trabalho de tradução para o hebraico do Jogo da amarelinha do Cortázar, cuja publicação foi qualificada como “o evento cultural mais importante de Israel em 2013”. Já Löhr teve seus A máquina de xadrez e A manobra do rei dos elfos, publicados pela Record.
  2. Que deve ter sido muito bem vendido, haja vista ter sido republicado em uma edição de bolso, sempre um bom indicativo do sucesso de vendas.
  3. Tem! Yey!
  4. Não consegui pegar quem era o autor.
  5. Apelido carinhoso de quem gosta tanto desse autor ao ponto de colocar um texto inteiro dele numa nota de rodapé.
  6. Ui.
  7. Deve ser por isso que, mesmo querendo muito ler o recém-lançado O drible, de Sérgio Rodrigues, eu ainda não tenha iniciado a leitura. Preconceito besta, mas a centralidade do tema futebolístico me afasta um pouco – ao contrário de O segundo tempo, de Michel Laub, em que o tema não parece ser tão importante assim quando se dá uma olhada na orelha do livro.
  8. Estou para ler algo mais engraçado do que a seguinte fala dela: “Nada muda o fato de que não vou poder anunciar que o livro ganhou o prêmio e ter todos os benefícios que isso pode trazer, do dinheiro ao prestígio. Porque ele não ganhou. Simples assim.”