Alguns escritores têm vidas tão interessantes quanto as histórias de seus romances e escritos. Como exemplo disso, podemos citar Hemingway e London, que viveram tantas aventuras quanto os personagens de suas histórias. Mas existem também escritores que, por mais que suas vidas não tenham tido toda aquela vertigem aventurosa e romanesca, ainda assim tiveram uma vida interessante o suficiente para que possamos nos debruçar sobre ela com uma curiosidade renovada a cada página. Além do mais, a tradução da trajetória existencial em escritura desempenha um papel central nisso tudo, pois uma vida semicomum narrada com esmero e perspicácia se torna uma história tão enriquecedora quanto qualquer outra.

Essa introdução pode soar meio canhestra quando se encontra na abertura de uma resenha do livro Só garotos, de Patti Smith, especialmente porque a autora teve uma vida interessante o suficiente para figurar em uma história literária e tanto, além de possuir valor emblemático com relação à (contra)cultura norte-americana e o movimento punk dos anos 70. O que quero dizer com essa abertura é que por mais comum que a vida de Patti Smith possa parecer em diversos momentos, não é nada banal a maneira como ela envolve o leitor para, enfim, levá-lo aos pontos em que sua vida intersecta toda a rica e subversiva cena cultural dos Estados Unidos da época. A marca pessoal e os mergulhos individuais só acrescentam ao livro ao invés de cegá-lo ao turbilhão que varria o american way of life e sua civilização.

O livro em questão foi escrito como cumprimento de uma promessa da artista a Robert Mapplethorpe, seu companheiro de muitos anos que se tornara uma referência nas artes visuais dentro do cenário cultural dessa época. Só garotos é nada mais do que isso: o testemunho de uma das figuras desse movimento contracultural acerca de suas experiências, suas dificuldades e suas impressões e opiniões, tudo isso organizado em torno do eixo da narrativa, que é a relação dela (Patti Smith) com ele (Robert Mapplethorpe). Pode parecer uma visão restrita pela sua tônica pessoal, mas Patti Smith teve uma vida rica o suficiente para que o universo de transformações históricas a seu lado não lhe passasse despercebido, nem de sua percepção nem de sua narrativa.

Na minha opinião, é justamente da junção entre trajetória pessoal e diálogo com o quadro mais amplo que Só garotos consegue quebrar sua especificidade e ir além, tirando dali seus trunfos. Ficamos estupefatos ao ver Allen Ginsberg surgindo numa página, o Blue Öyster Cult em outro, e o Hotel Chelsea em várias outras. Vibramos com a aparição de cada um deles, pois os conhecemos e vamos cruzando os fios existenciais que existem entre um e outro, formando a grande tapeçaria do período. Mas a combinação disso com os percalços da vida de Patti Smith e Robert Mapplethorpe é que dá uma solidez cotidiana, algo como uma verossimilhança mais palpável, de textura mais familiar. E é o que realça todo o resto.

Não que a vida dos dois tenha sido em todos os sentidos arquetípica, mas os dilemas que os dois enfrentaram certamente foram os de outros também, talvez em especial aquela devoção religiosa à arte e à sua glorificação, assim como as resignações que tiveram que assumir para poder se dedicar a ela. É como se pudéssemos dar uma olhadela rápida nos bastidores e no making of do show que já minimamente conhecemos. Talvez saber que Patti trabalhou duro em livrarias, e que eventualmente buscava edições raras para conseguir algum dinheiro extra revendendo-as, não altere radicalmente a percepção ou o valor de seus poemas ou de suas composições, mas certamente ajuda a torná-la mais humana na maneira como a vejo e, em alguma medida, como os leitores de Só garotos a veem. Isso para mim é uma grande coisa.

Saber como ela conseguiu uma maneira de ir a Paris para visitar os lugares nos quais seus mestres literários viveram concede uma humanidade muito significativa tanto à artista quanto a sua obra. As peripécias que ela fazia por um Rimbaud ou um Baudelaire criam uma aura distinta ao seu redor.

A impressão que me deu ao ler Só garotos foi a que também tive ao ler Paris é uma festa, do Hemingway: é legal ver escritores, músicos, poetas e artistas famosos fazendo coisas comuns, como trocar o pneu de um carro ou preocupar-se com contas a pagar. Olhando do ponto de vista da obra, tudo isso fica meio obscurecido, talvez nem sequer apareça ou transpareça nela, mas é interessante sabê-lo, não somente por curiosidade, mas até para tentar olhar para aquilo que você já conhecia de uma outra perspectiva. Saber que Robert Mapplethorpe já tomou um esporro de um livreiro por tentar olhar revistas eróticas lacradas talvez não vá redimensionar sua visão acerca de sua perturbadora obra, mas ajuda a entender o quanto a arte significava para ele, afinal ele aceitou o risco de um esporro para poder levá-la a cabo.

Quem sabe essa seja uma analogia cabível: Só garotos talvez seja o Paris é uma festa da contracultura, ou melhor, de parte importante dela. Assim como o livro de Hemingway, por si só, não dá conta de cobrir toda a envergadura da “geração perdida” – ele sequer se propôs a fazê-lo –, também o de Patti Smith não consegue condensar toda a transbordante subversão, as propostas e os elementos que compõem aquele mosaico de obras, artistas e questionamentos. Apesar disso, as pinceladas narrativas de um e outro conseguem captar algo de geral e abrangente, algo que está entretecido na textura espiritual e histórica daquele momento e daquelas pessoas, sendo, por conta disso, uma ótima forma de adentrar nos domínios dessa complexa e fascinante experiência.