O primeiro parágrafo já tinha me pegado de jeito logo na primeira leitura, lá quando Noites de alface era só um capítulo solto dentro da Granta dos 20 melhores jovens escritores brasileiros. Não sou de colecionar “inícios marcantes” de romances, novelas ou contos, mas acho que vou começar a fazer isso agora:

 

Quando Ada morreu, as roupas ainda não tinham secado. O elástico das calças continuava úmido, as meias grossas, as camisetas e as toalhas de rosto penduradas do avesso, nada estava pronto. Havia um lenço de molho dentro do balde. Os potes de recicláveis lavados na pia, a cama desfeita, os pacotes de biscoitos abertos em cima do sofá – Ada tinha ido embora sem regar as plantas. As coisas da casa prendiam a respiração e esperavam. Desde então, a casa sem Ada é de gavetas vazias.

 

Em um parágrafo de poucas linhas, Vanessa Barbara passa ao leitor toda a dimensão emocional da história: Ada morre inesperadamente, e deixa uma falta enorme em sua casa. Falta que irá permear todo o romance. No parágrafo seguinte, sabemos quem é que realmente vai sofrer com essa perda: Otto, o homem com quem é casada desde 1958 e que nunca saiu do lado dela por mais de 50 anos. Ada era a única pessoa com quem Otto se importava e falava. Na pequena cidade do interior, na casinha amarela prensada entre outras casas que ocupam o morro em que está localizada, é apenas com ela que ele interage. Não possuem filhos ou parentes próximos, e Otto só nutre amizade com uma pessoa, o Sr. Tanaguchi, um ex-soldado japonês da Segunda Guerra que agora sofre de Alzheimer (e que, por conta disso, Otto não visita mais).

Ao contrário do marido, Ada é a pessoa que mais se envolve com a vizinhança. É amiga de todos, e tenta cuidar e ajudar cada um da sua maneira. As pessoas nem entendem como uma mulher divertida e faladeira como ela pode ser casada com um velho tão fechado e rabugento como Otto. Mas ele parece ser outra pessoa ao lado de Ada, alguém que não se preocupa de falar sobre o que for com ela. Mas Ada se foi, e agora Otto ficou sozinho na casinha amarela ouvindo a vida dos vizinhos acontecer pelo som que cruza as paredes.

Sem Ada, Otto se vê obrigado a se reintegrar à vizinhança, por mais que isso lhe estresse. Em cada capítulo do romance, Vanessa Barbara apresenta uma das pessoas dessa pequena comunidade e mostra como elas se relacionam com Otto. Cada encontro e conversa é marcado pelo desconforto de todas as partes: o velho senhor não sabe como manter uma conversa com Nico, o entregador da farmácia, ou Iolanda, a velha que acredita em todas as simpatias e coisas relacionadas à energia e à alma, que se recusa a falar com o sobrinho em um mesmo cômodo da casa, travando conversas inteiras com ele aos gritos a ponto de até Otto se intrometer nelas. Mas o que Otto vai descobrindo são as peculiaridades de cada uma dessas pessoas através daquilo que entreouve, e assim o leitor se depara com um grupo de personagens com personalidades diversas e gostos inusitados.

Nico, por exemplo, é um apaixonado por bulas de remédio, que passa seus dias na farmácia lendo todos os efeitos que uma simples aspirina pode causar em uma pessoa. Sua conversa acaba, de uma maneira ou de outra, resvalando em algum fato curioso sobre uma bula de remédio contra reumatismo que poderia causar ansiedade, tonteira e outra reações variadas e esquisitas. Teresa é uma quarentona datilógrafa dona de três cães endiabrados, que a qualquer momento fogem pelo portão e correm embestados pela rua tentando lamber os transeuntes de que mais gostam (geralmente Nico). Mariana é uma recém-casada que abandonou o mestrado em antropologia e obriga o noivo, quando não está viajando, a assistir seu documentário favorito: Nanook, o esquimó. E tem o sr. Tanaguchi, que lutou uma Segunda Guerra Mundial de 30 anos, até ser convencido, nas Filipinas, de que ela havia acabado, e reencontrar uma das filhas, Maya, que agora cuida dele em seu estado debilitado (a única falha do livro, é, talvez, o fato de Vanessa não contar como ele chegou ao Brasil e porquê).

A simplicidade com que Vanessa apresenta as peculiaridade de cada personagem deixa o romance fluir sem barreiras de compreensão, e assim como o leitor se vê preso rapidamente à história de Otto, se liga facilmente aos anseios e desejos de seus vizinhos. Então, ouvindo uma coisa aqui e outra ali, e juntando tudo com o que Ada lhe contara quando viva, Otto vai se interessando mais pelos vizinhos, e começando a desconfiar que eles lhe escondem alguma coisa sobre a vizinhança. Alguma coisa sobre Ada.

 

Achava desconcertante a esposa ter desaparecido assim, de uma hora para outra, pois ela vivia na segunda-feira e, na terça, já não existia mais. Assim, de repente.

 

A incompreensão de Otto com a morte da mulher é devastadora. Sua vida, agora, é marcada por uma linha – os dias com Ada, os dias sem Ada –, e toda vez que ele novamente se dá conta de que sua mulher não está mais lá é doloroso. A própria maneira com que a autora demonstra isso deixa o coração doendo. Enquanto você está lá, se divertindo com mais um diálogo truncado de Otto com seus vizinhos, ou com a empolgação incontida de Nico sobre um novo remédio que chegou na farmácia, ela relembra o protagonista e o leitor de que o mundo sem Ada é um mundo triste. Ou quando Otto está pensando em alguma coisa, tirando alguma conclusão sobre Iolanda ou a amizade entre Teresa e Mariana, e animado tenta fazer um comentário com a esposa, ele recebe de novo o baque do fato de que Ada morreu, pois não a enxerga na sala. Tudo é narrado com uma dose carregada de melancolia e saudade, da tristeza de ter que passar mais um dia sozinho na poltrona com sua manta xadrez jogada nos joelhos, até o momento de voltar para a cama e rolar até pegar no sono.

É muito bonita a forma com que Vanessa Barbara faz Otto expressar seu amor por Ada. Me lembrei daquela crônica de Antonio Prata sobre aquele taxista falando da esposa falecida, em que diz que deveríamos fotografar os eventos cotidianos – a pessoa querida lavando a louça, escovando os dentes, vendo televisão ou lendo um livro – para lembrar dela como realmente era, e não uma pessoa maquiada e mecanicamente posada em uma foto. É dessa maneira que Otto lembra da esposa: seu ritual ao acordar todos os dias, seu jeito rápido de pegar no sono, a forma como andava pela casa recolhendo coisas fora do lugar e como transitava entre a cidadezinha. Ele não sente falta de uma Ada idealizada, perfeita e bela em seu vestido de casamento, mas da Ada com quem dividiu sua vida, de seus pequenos gestos repetitivos.

Apesar de haver um mistério que logo se revelará ao leitor – eu fiquei na dúvida se Otto ficou sabendo desse segredo ou preferiu ignorá-lo –, o cerne do livro é a solidão em que ele vive e como a morte de Ada é dolorida para ele. Vanessa Barbara define essa solidão como uma “insônia infinita”: “os maus pensamentos permaneciam para sempre, pois nunca mais haveria manhã”, pois Ada era fundamental para que ele acordasse de sua noite mal dormida, que nem o chá de alface ajudava a amenizar. Todas as noites eram de uma alface que prometia um sono que nunca veio, tão insosso quanto o vegetal folhoso que ele tanto odiava.

 

‘Sei que não estamos mais aqui, juntos, mas queria que você soubesse que eu te amo’, ele disse, segurando a mão da esposa. Se era tudo um sonho, então era melhor aproveitá-lo.

E ela, incrivelmente segura de que aquilo não era mesmo real: ‘Eu sei.’ E sorriu.

 

Noites de alface é uma dessas histórias que te divertem ao mesmo tempo em que você tem que segurar um lenço de papel para enxugar as lágrimas num próximo arroubo de tristeza de Otto ou de mais uma declaração de amor infinito. Otto é rabugento, antissocial, e melancólico, e, apesar disso, ele é a personagem que mais me emocionou em todo o romance, de quem mais me senti próxima – mais querido até que a própria Ada. Tenho esse meu gosto por personagens trágicos, que não conseguem lidar muito bem com os problemas que surgem pela vida e muitas vezes não querem nem tentar superá-los, assim como Otto. Vanessa Barbara apresenta sua tristeza com muita sutileza, mas com efeito impactante. A vontade é de abraçar Otto até ele chorar a última lágrima pela perda da mulher. Mas é óbvio que ele não deixaria ninguém chegar perto o bastante para fazer isso.